Sergio Moro: a voz solitária no deserto
O juiz teme que a Lava Jato não provoque mudanças estruturais no Brasil na luta contra a corrupção
FLÁVIA TAVARES
27/11/2015 - 20h50 - Atualizado 27/11/2015 21h04
Ele chegou vestindo terno, camisa e gravata pretos, a roupa de sempre. É seu hábito. Como se vivesse um luto permanente. Na tarde de segunda-feira, ao subir no palco do auditório do hotel Renaissance, em São Paulo, o juiz Sergio Moro parecia, além de enlutado, farto. Havia em seu semblante um esgotamento, próprio de quem luta sempre a mesma luta. De quem é surpreendido, a cada duelo, pela ágil reorganização das forças do adversário. “Esse processo, até o momento, tem ido bem”, disse o juiz para os profissionais da imprensa e do mercado editorial que lotavam o IX Fórum da Aner, a Associação Nacional de Editores de Revistas. “Mas eu não posso assegurar o dia de amanhã.” Moro é o juiz responsável pelos processos da Operação Lava Jato na Justiça Federal do Paraná. Foi ele um dos propulsores da maior investigação sobre corrupção que o Brasil já testemunhou. Antes de sua palestra, foi paparicado como uma Kim Kardashian, com selfies e autógrafos para fãs. Devia estar exultante. Não resignado.
Moro passou a dissecar seu abatimento. “Apesar dessas revelações e de todo o impacto desse processo, não assisti a respostas institucionais relevantes por parte do nosso Congresso e do nosso governo. Parece que a Operação Lava Jato é uma voz pregando no deserto.” É uma voz que urra. Somente na primeira instância, a Lava Jato tem o seguinte a dizer: 360 buscas e apreensões, 116 mandados de prisão, 35 acordos de delação premiada, pedido de restituição de R$ 14,5 bilhões – sendo que R$ 1,8 bilhão já foram recuperados. Não é eloquente o suficiente? São 75 condenações que somam penas de 626 anos, 5 meses e 15 dias. Ouviram agora? Tudo indica que não. Ainda no fórum, Moro defendeu as prisões efetuadas pela Lava Jato em entrevista a Frederic Kachar, presidente da Aner e diretor-geral da Infoglobo e da Editora Globo. O juiz disse que elas eram fundamentais “para dar um freio a algumas condutas que nos causavam espanto”. Como se antecipando a manhã de quarta-feira, em que o senador Delcídio do Amaral, do PT de Mato Grosso do Sul, foi preso por planejar a fuga do ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró, Moro continuou. “Teve mais de um caso em que, com a operação já em andamento havia tempos, algumas pessoas ainda estavam praticando crime de corrupção. Mesmo com toda aquela publicidade.” É realmente espantoso.
DIÁLOGO
O juiz Sergio Moro concede entrevista a Frederic Kachar, no fórum da Associação Nacional dos Editores de Revistas (Aner). Ele confessou que chega ao fim do ano “exausto” (Foto: LUCÍOLA OKAMOTO/MIKIO FOTOGRAFIAS)
Que deserto é esse em que nenhuma iniciativa institucional contra acorrupção floresce? Em que um escândalo que atinge Executivo e Legislativo não semeia transformações estruturais? Na semana passada, assistimos a uma sufocante tempestade de areia, com um amigo íntimo de um ex-presidente, um senador e um banqueiro presos sob suspeita de corrupção. A desertificação está no privado, no público e na intersecção de ambos. A voz da Lava Jato, a voz de Moro, não ressoa. Milhares de vozes disseram o mesmo que o juiz nas manifestações de junho de 2013. Foi um berro que fez até o mais petrificado dos ambientes se mexer: o presidente do Senado, Renan Calheiros, alvo da Lava Jato, anunciou uma série de propostas. Entre elas, estava o projeto para tornar a corrupção um crime hediondo – que tramita desde 1990 e aumenta as penas dos condenados. O projeto foi aprovado na Casa e seguiu para a Câmara, onde aguarda votação. Naqueles dias tempestuosos, a presidente Dilma Roussefffoi à TV insistir na pauta da corrupção como crime hediondo.
Que deserto é esse em que nenhuma iniciativa institucional contra a corrupção floresce?
Dois anos mais tarde, ferida pelos baixíssimos índices de popularidade, Dilma retomou o discurso do combate à corrupção. Anunciou, em março, um pacote de medidas, algumas recicladas e todas dependentes de aprovação no Congresso, que tramita há anos: criminalização do caixa dois, aplicação da Lei da Ficha Limpa para todo o funcionalismo, confisco de bens oriundos de enriquecimento ilícito, entre outras. No mesmo dia, o anúncio planejado para ser triunfal foi ofuscado pela histriônica demissão do então ministro da Educação, Cid Gomes, humilhado no plenário pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha, outro alvo da Lava Jato. A mediocridade política soterrou o som das medidas da presidente. Em junho, a mediocridade voltou a triunfar: o governo tirou a urgência no trâmite dos projetos anticorrupção em troca de aprovar mais rapidamente o ajuste fiscal. Até aqui, o ano de 2015 pode ser lembrado pelas históricas prisões de empreiteiros, parlamentares e banqueiros. E pela mais absoluta inação institucional para evitar que eles próprios ou outros reincidam.
O Ministério Público Federal também não emplacou no Congresso as dez medidas anticorrupção que propõe. Colhe assinaturas desde março para um projeto de lei de iniciativa popular. Até agora, conseguiu cerca de 700 mil do 1 milhão de assinaturas necessárias. Outro projeto, defendido por Moro, permitiria a prisão do réu logo após sua condenação em segunda instância. Há quem diga que isso viola o princípio da presunção da inocência. Moro diz ser a forma mais imediata de atacar a morosidade da Justiça. O projeto tramita, lentamente, no Senado. É o deserto a que Moro se refere.
Um Saara não se torna oásis em um ano. Hoje, 528 projetos de lei de combate à corrupção se arrastam no Congresso. Recapitulando apenas o período pós-redemocratização, o impeachment do presidente Fernando Collor não foi suficiente para alterar o rumo – e esse mesmo presidente, hoje senador, está não só envolvido na Lava Jato como votou, na noite de quarta-feira, pela soltura de seu colega Delcídio do Amaral. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, trabalhou arduamente para enterrar, em 2001, a CPI da Corrupção, que investigaria as acusações de desvio de verbas na Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia, a Sudam, e na Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, a Sudene. O mensalão, que completa dez anos, também não foi o bastante. Conseguimos o improvável: pioramos de lá para cá. No Índice de Percepções da Corrupção da ONG Transparência Internacional, estávamos na 62a posição em 2005, numa lista de 159 países. Em 2014, caímos para a 69a posição entre 175 países.
Algumas rosas-de-jericó, ou flores da ressurreição, por sua resiliência em crescer em ambientes áridos, brotaram no deserto institucional brasileiro. A Controladoria-Geral da União foi criada em 2001; a Lei de Acesso à Informação foi aprovada em 2011; a Lei Anticorrupção, que prevê a responsabilidade de empresas pela prática de atos lesivos contra a administração pública, foi sancionada em 2013 – embora só tenha sido regulamentada em 2015. É frustrante, porém, verificar a lentidão de nossa reação: a primeira agência reguladora de grandes corporações nos Estados Unidos, por exemplo, é de 1906. No Japão, num escândalo de 1976, em que a empresa americana Lockheed Martin ofereceu propina para o alto escalão do governo, o então primeiro-ministro, Kakuei Tanaka, foi preso. Em 1993, o Japão criou o Ato de Prevenção de Concorrência Desleal, que pune duramente empresas que pagam propinas. A Operação Mãos Limpas, na Itália, a que Moro sempre recorre como exemplo de mudança na corrupção endêmica de um país, é de 1992. Estamos atrasados, mas há espasmos de vida no infértil terreno brasileiro. Um deles é a voz de Moro, a voz da Lava Jato.