CartaCapital - 06/06/2018
Opção do atual governo por encerrar importantes políticas públicas já provoca sérios efeitos sobre a população e o quadro tende a piorar
Enquanto Michel Temer e seus ministros tentam lidar com mais um episódio de crise e ampla reprovação social diante do aumento dos preços dos combustíveis, os serviços e as instituições públicas nacionais vão se deteriorando e servem cada vez menos ao povo.
O anúncio de cortes em programas sociais para compensar a queda do diesel se soma agora à drástica redução orçamentária para políticas sociais e ao congelamento para os próximos 20 anos. Sem qualquer debate, o governo vem aprovando alterações significativas à Constituição e à estrutura de funcionamento da máquina pública. Por isso, a revogação da Emenda Constitucional 95 segue sendo a principal pauta de interesse verdadeiramente público no Brasil.
De fato, a opção do atual governo pela descontinuidade de importantes políticas públicas já provoca sérios efeitos sobre as vidas humanas e o quadro tende a piorar. Estudo recente do Ipea e da Fiocruz mostram que, depois de 15 anos de queda, a mortalidade infantil volta a crescer no País, atingindo desproporcionalmente as crianças indígenas. Em Roraima, o número de mortes infantis para a população indígena já aumentou 106%.
Outro aspecto importante da rápida deterioração das instituições públicas e, consequentemente, das políticas públicas e da imagem do País, é o fisiologismo exacerbado que se (re)instalou sob o governo Temer.
Tratam-se de nomeações e troca de favores para atender a interesses privados, envolvendo figuras de alto escalão, mas também um fisiologismo de terceiro, quarto e quinto escalão que contaminam o serviço público com práticas antigas de clientelismo, corrupção, perseguição e assédio.
Denúncias a esse respeito nos órgãos que atuam em questões socioambientais e agrárias chamam atenção e são preocupantes num contexto de aumento de violência no campo. Na segunda-feira 4 a Comissão Pastoral da Terra lançou seu relatório sobre Conflitos no Campo, que mostra que 2017 teve o maior número de assassinatos no campo (71) nos últimos 14 anos.
Sem compromisso do governo com a pauta socioambiental, sem autonomia para cumprir com sua missão institucional, nem orientação política consistente ou orçamento, órgãos como o INCRA, o ICMBio e a Funai voltaram a ser solo fértil para ingerências, casos de abusos e imoralidades. Nesse contexto, de constantes trocas de presidentes da Funai por influencias e disputas partidárias, a promoção e defesa dos direitos dos povos indígenas fica cada vez mais distante da realidade do Estado.
Ainda assim, dentre os mais de 2 milhões de servidores federais, há uma grande parcela de pessoas comprometidas com a ética no serviço público e que resistem diariamente em toda a Esplanada. Trabalhando em nome da observância das leis e princípios democráticos que regem o País, bem como no cumprimento de suas obrigações enquanto agentes públicos, os servidores não deixam de ser também defensores de direitos humanos.
Isso porque, toda função pública deve prezar pelo bem comum e, portanto, se pautar pelo respeito aos direitos humanos. Ou seja, garantir que a ação estatal vise sempre a proteção da vida e a dignidade de indivíduos e coletividades.
No caso da Funai, sem condições adequadas de trabalho e de segurança, há servidores que arriscam sua integridade física e, em alguns, casos até mesmo suas vidas, para evitar que situações de etnocídio se instalem.
Isso se dá, por exemplo, nas áreas de atuação das Frentes de Proteção Etnoambiental ou das Coordenações Regionais da Funai, responsáveis pelo acompanhamento de processos de regularização fundiária; por ações de proteção ambiental das terras indígenas; e pela garantia de direitos a populações que frequentemente sofrem violências e violações que ficam impunes.
Há também servidores que atuam sob constante pressão política, assédio e ameaça por parte de seus superiores ou de parlamentares anti-indígenas que, cada vez mais, têm livre acesso ao órgão. Defender uma atuação laica, sem discriminação, dentro dos parâmetros legais, em defesa de direitos fundamentais, passou a justificar exonerações, denúncias infundadas, processos disciplinares, difamações e perseguições.
No último ano, situações de assédio, tentativas de difamação e patrulhamento digital fizeram com que postagens nas redes sociais e artigos de opiniões críticas - inclusive diversos publicados nesta CartaCapital - sustentassem um “dossiê” do deputado ruralista Alceu Moreira (PMDB/RS) em tom de censura a mim enquanto servidora do órgão.
Como resultado, moveram a máquina pública durante nove meses para tais fins e conseguiram cancelar uma licença sem vencimentos e depois uma cessão autorizada pelo então Presidente da Funai a pedido do MPF.
Requerimentos e cartas de parlamentares direcionados a servidores individualizados nos órgãos federais passaram a ser uma realidade e atingem o direito à liberdade de expressão e de atuação cidadã. Ainda no caso da Funai, sob o contexto de pressão política e sem apresentar fatos ou argumentos no processo, tive notícias de uma denúncia na Ouvidoria da Funai afirmando que a atuação voluntária da servidora como Perita Independente na Mecanismo de Peritos da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas denegria a imagem do país e da instituição.
Curiosamente, sob o governo anterior, a candidatura junto à ONU obteve apoio manifesto pelo Estado brasileiro e o entendimento da diretoria da Funai à época era de que a possibilidade de uma servidora disputar tal posição representava um reconhecimento do alto nível dos técnicos que compõem o órgão.
O caso foi levado ao Alto Comissariado de Direitos Humanos, ao Presidente do Conselho de Direitos Humanos e ao Assessor Especial do Secretário Geral da ONU para casos de represálias e retaliações a pessoas que contribuem com o sistema ONU de direitos humanos.
Além dos especialistas independentes das Nações Unidas, qualquer pessoa ou organização que tenha enviado informes ou denúncias, ou participado de reuniões ou visitas com especialistas e relatores de direitos humanos das Nações Unidas, podem recorrer a tal mecanismo se sofrerem algum tipo de represália por parte dos governos, ou se se sentirem de alguma maneira retaliadas por tal atuação.
No Brasil, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a Rede de Cooperação Amazônica, o Comitê Brasileiro de Defensores e Defensoras de Direitos Humanos, a Plataforma de Direitos Humanos, o Comitê Brasileiro de Política Externa e Direitos Humanos, lideranças e intelectuais indígenas e negras reunidas no Seminário Racismo e anti-racismo no Brasil, realizado na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, e diversas organizações indígenas e indigenistas, feministas e de direitos humanos, manifestaram sua solidariedade e indignação considerando o que o caso ilustra, inclusive nas mensagens veladas. Na semana passada o atual presidente da Funai reestabeleceu a licença sem remuneração da servidora permitindo a conclusão de seu mandato junto à ONU.
Nesse processo, diversas alianças foram fortalecidas. Encontrar nossas redes de apoio e proteção, assim como nossas fontes internas de resiliência, são fundamentais para enfrentar os quadros de perseguições, assédios e doenças pelos quais muitos servidores públicos e defensores de direitos humanos estão passando.
A união de pessoas e movimentos em torno de causas justas é o único caminho. Mais do que nunca, precisamos ser muitas e muitos, incansáveis e solidárias, defensoras e defensores da ética no serviço público e dos direitos humanos no país.
Por Erika Yamada, doutora em Direito e Política Indígena pela Universidade do Arizona, tem mandato voluntário como perita independente e vice-presidente no Mecanismo de Peritos da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
As opiniões expressas aqui são pessoais e não refletem o posicionamento do Mecanismo da ONU