AMBIENTE
DDT e Outras Histórias de Horror*
Clara Queiroz
Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa
1. As questões ambientais são-nos hoje tão familiares e parecem-nos tão óbvias quanto, na verdade, são obscurecidas por tão imbrincadas nas tecnicidades científicas, sociais, económicas, urbanísticas, alimentares, da saúde. Além do mais, ao tentar propor soluções para resolver problemas ambientais esbarramos noutros interesses, eles próprios de extrema importância, como os económicos, sociais, culturais ou os próprios rumos do desenvolvimento tecnocientífico,
Acresce que há, na verdade, nalguns países como Portugal, um défice acentuado de educação ambiental. Talvez valha a pena fazer uma breve incursão histórica que nos dê uma melhor noção dos contributos que conduziram ao nascimento dos movimentos ecologistas no mundo ocidental.
É certamente controverso atribuir uma data para o ‘acordar de uma consciência ética ecológica’ pública alargada, mas eu arriscaria apontar uma data tão recente como 1962. Penso que a consciência mais generalizada de que na Natureza tudo está interligado e em interacção, de que nós humanos somos parte integrante da Natureza e de que as perturbações causadas num pequeno sector podem ter repercussões em larga escala surgiu com o trabalho da naturalista americana Rachel Carson exposto no livro Silent Spring1, publicado em 1962. É certo que o cientista Svante Arrhenius tinha, já em 1908, alertado para o aquecimento do Planeta que o ‘efeito de estufa’, causado pela utilização do carvão e do petróleo, provocaria e que outros sinais de alarme tinham soado como, por exemplo, a morte de quatro mil pessoas em Londres, em 1952, devido ao smog, uma mistura de fumos e nevoeiro. Mas a contradição entre o modelo de desenvolvimento adoptado pelos países
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industrializados e os interesses das populações não tinha sido verdadeiramente entendida na sua globalidade.
A bióloga Rachel Carson, funcionária do United States Department of Fish and Wildlife, fez um estudo profundo sobre as consequências do DDT e de outros insecticidas de acção semelhante e mostrou que, ao exterminar massivamente insectos ‘indesejáveis’, se quebrava um equilíbrio na natureza, com efeitos em cadeia a longo prazo. Primeiro, esses insecticidas são dificilmente degradáveis e permanecem por longo tempo nos locais tratados, acumulando-se; depois, eles entram na cadeia alimentar de muitas espécies, incluíndo a humana, com consequências letais ou provocando várias doenças como o cancro. Ela comparou o efeito das pulverizações maciças de DDT ao de uma nova bomba atómica.
O livro causou um profundo abalo nos Estados Unidos e houve repercussões a nível tão elevado como o Congresso e o próprio Presidente, na altura John Kennedy. Ao impacto causado não foi alheia a violenta reacção da indústria química, das sociedades de agricultores e da própria comunidade científica. Apesar de Carson ser uma escritora com muitos trabalhos publicados sobre a vida selvagem, entre os quais, dois livros best-seller, acusaram-na de incompetente, obscurantista, conservadora, alarmista, incapaz de entender o progresso científico, a modernidade. O grosseiro insulto machista foi um dos mais utilizados nos media. Chamaram-lhe solteirona histérica que, não tendo filhos, não se percebia porque estava tão preocupada com as gerações futuras. A um jornalista que lhe perguntou porque não se casara, respondeu ‘por falta de tempo’; estava demasiadamente ocupada a tentar impedir os erros causados por profissões esmagadoramente dominadas por homens, acrescentaria eu.
O DDT, produzido nos Estados Unidos desde 1943, (a fórmula química fora determinada pelo alemão Othmar Zeider em 1873) tinha sido utilizado durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45) para combater a vaga de piolhos que atacava os soldados. Com resultado; mas sem que as implicações desse tratamento tivessem sido devidamente estudadas. Terminada a Guerra, a indústria química procurou
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uma nova utilização para as toneladas do pesticida que tinha em stock: os insectos que atacavam as produções agrícolas foram o alvo escolhido. O entusiasmo foi imediato. Os agricultores aumentavam a produção, o Governo viu na utilização do DDT um factor de desenvolvimento económico, a indústria química viu um meio de escoar stocks e de continuar uma produção rentável, a comunidade científica viu o seu prestígio engrandecido e uma oportunidade para demonstrar a sua importância no desenvolvimento económico e social e estreitar a sua ligação à indústria. A ‘eliminação da fome e da miséria’ foi, obviamente, evocada. Na altura, só Rachel Carson teve a coragem de falar contra a corrente que via nos pesticidas um indiscutível bem para a humanidade.2
Vale a pena lembrar esta história porque, além de ser fundadora de uma posição ética generalizada em relação à Natureza e de um movimento que hoje é comum, é um caso exemplar de como interesses sectoriais e económicos precipitam a utilização de drogas ou a implementação de tecnologias sem ter havido um estudo sério prévio de todas as suas implicações. É também um caso exemplar do ataque violento que os detentores desses interesses disparam sobre quem ousa denunciar as suas consequências negativas.
O movimento que Rachel Carson desencadeou tornar-se-ia imparável e inúmeros foram os seus apoiantes na população assustada. Contudo, só dez anos mais tarde a utilização do DDT nos Estados Unidos foi banida. Em 1982, dezasseis anos após a sua morte, o Presidente Jimmy Carter atribuiu-lhe postumamente a mais alta condecoração civil americana: a Presidential Medal for Freedom. Mas isso não significou o fim da poluição nem impediu a entrada em cena de novas actividades poluidoras e atentatórias da saúde pública tão devastadoras como nem Rachel Carson sonhara.
2. Hoje, a lista dos estragos é aterradora. Rios poluídos devido às descargas criminosas de detritos fabris que matam a fauna e a flora e impedem as várias formas da sua fruição, destruição sectorial da camada de ozono atmosférico pelas emanações de CFCs (clorofluorcarbonetos), destruição das florestas e da
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consequente capacidade de absorpção do dióxido de carbono, ausência de zonas verdes nos aglomerados populacionais, construção maciça e, frequentemente, sem garantia do cumprimento das regras de segurança, janelas com vidros espelhados que contribuem para o aquecimento das cidades, campos de golfe e piscinas, em zonas secas como o Algarve, e destruição da zona costeira em nome do turismo, emanação em larga escala de gases poluentes não só pelos complexos industriais, mas também pela excessiva circulação de veículos e pelos combustíveis utilizados, cimenteiras implantadas em zonas protegidas, lixos provenientes de embalagens construídas com materiais de difícil degradação, lixos hospitalares tratados sem os devidos cuidados sanitários, lixos provenientes da utilização da energia nuclear. Isto para só lembrar alguns, pois poderíamos continuar por aí fora.
Os medicamentos constituem outro sector de insegurança. Com que frequência somos informados de medicamentos retirados do mercado porque estudos posteriores à sua utilização durante anos, e receitados por médicos, revelaram que têm ‘efeitos secundários’ altamente prejudiciais.
E que dizer dos alimentos? Vacas loucas, frutos e vegetais contaminados por pesticidas e adubos, frangos e porcos engordados com hormonas e defendidos das pragas por antibióticos ministrados preventivamente, peixes com mercúrio, etc. A ameaça mais recente e que, a meu ver, pode ter efeitos incalculáveis vem agora dos organismos geneticamente modificados, de que gostaria de falar um pouco mais adiante.
Parece-me aconselhável esclarecer que a crítica às alterações ambientais não pressupõe o sonho idílico de retorno a um qualquer paraíso perdido, inalterável. Ao contrário, o universo e o nosso Planeta são entidades dinâmicas em permanente alteração. As suas massas geológicas movem-se, transformam-se e reajustam-se, os seres vivos que o habitam têm-no transformado no decorrer dos tempos; a humanidade, desde que existe, tem usado o seu poder de intervenção na Natureza de uma forma bem destruidora. Mas essa destruição jamais se tinha dado de forma tão devastadora nem à escala planetária, como agora acontece. Os cataclismos
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anteriores, quer ‘naturais’ quer de origem humana, tinham causado desequilíbrios reajustáveis num novo equilíbrio. Hoje, estamos perante um fenómeno novo em escala e poder devastador de que conhecemos as principais causas e algumas soluções, ainda que seja difícil pô-las em prática. É por isso que o Ambiente é uma questão que vale a pena e deve ser discutida.
Perante o perigo ambiental eminente, Immanuel Wallerstein formulou duas perguntas: “para quem é que o perigo existe? E o que explica esse perigo acrescido? A questão do ‘perigo para quem’ tem, por seu turno, duas componentes: quem, entre os seres humanos, e quem entre os [outros] seres vivos. A primeira questão invoca a comparação das atitudes Norte-Sul em questões ecológicas; a segunda é um tema da ecologia profunda. Ambas, de facto, envolvem problemáticas sobre a natureza da civilização capitalista e sobre o funcionamento da economia mundial capitalista, o que significa que antes de tratar o tema de ‘para quem’, nós tenhamos que analisar a origem do perigo acrescido.”3
Para responder a estas perguntas, Wallerstein analisa as duas características fundamentais do capitalismo histórico: primeiro, a necessidade imperativa de expansão em termos de produção total, com a consequente expansão geográfica e a infindeavel acumulação de capital; depois, no processo de acumulação de capital, os principais capitalistas não têm o hábito de pagar as suas contas.
Para preservar o ambiente, podemos considerar, desde já, dois tipos diferentes de medidas: um tem a ver com a posterior eliminação e tratamento dos produtos poluentes resultantes da actividade produtiva (toxinas, lixos industriais); o outro prende-se com investimento na renovação dos recursos naturais (replantação de árvores, por exemplo) e na aposta em encontrar fontes de energia ‘limpas’. Mas as variadas medidas que os movimentos ecologistas têm proposto acarretam custos elevados e deparam com uma feroz resistência por parte da indústria que não está disposta a perder a taxa média de lucros que obtém mundialmente.
Face a esta situação, ficamos confrontados com duas possibilidades: ou os governos obrigariam as empresas a assumir essas despesas, o que lhes diminuiria os lucros,
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ou os próprios governos as assumiriam e, para isso, teriam que subir os impostos. Impostos sobre as empresas tinha o mesmo resultado que a primeira hipótese – a redução dos seus lucros – e elas resistem por todos os meios; impostos sobre os trabalhadores é impopular e, nalguns países, resultaria em revolta. Mas há uma terceira alternativa que é, na verdade, o que tem ocorrido mais frequentemente: não fazer absolutamente nada, o que conduz às catástrofes ecológicas a que temos assistido. (O protocolo de Quioto só agora vai começar a ser implementado por alguns países e o maior poluente, os Estados Unidos, não o assinou.)
3. A 2 de Dezembro de 1984, fez agora vinte anos, um gás letal – o isocianeto de metilo – escapou-se de uma fábrica de pesticidas em Bhopal, na Índia, espalhando-se por uma área de quarenta quilómetros quadrados. Sob a forma de nuvem rasteira, o gás avançou pelas ruas e entrou pelas casas. Morreram imediatamente mais de oito mil pessoas; posteriormente, das quinhentas mil pessoas expostas, o número de mortos atingiu os vinte mil; outras cento e vinte mil ficaram com doenças crónicas. A fábrica era a Union Carbide, propriedade da empresa norte-americana Dow Chemical; um slogan dava conta do que ali se produzia: “Uma substância milagrosa para salvar os agricultores do mundo”.
Depois do acidente, Warren Andersen, Presidente da Union Carbide, regressa a Bhopal onde inaugurara a fábrica cinco anos antes. O chefe da polícia local prende-o. Por pouco tempo: pressões dos Estados Unidos sobre o governo indiano conseguem a sua rápida libertação e regresso à sua luxuosa casa na Florida. Não voltará à Índia, onde o espera um julgamento. Tanto ele como a Union Carbide, que fechou em Bhopal em 1985, são acusados de assassínio. A empresa alega sabotagem, mas a realidade é bem diferente. Na verdade, até existia um relatório secreto, desconhecido dos trabalhadores locais, que mencionava a hipótese de um desastre e das suas consequências.
Antes do acidente, com o pretexto de dificuldades financeiras, a Union Carbide tinha reduzido o número de trabalhadores, incluindo supervisores da segurança; os próprios sistemas de segurança ou funcionavam já deficientemente ou tinham sido
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desligados. Na altura do acidente, o alarme foi desligado pela administração para ‘não assustar’ a população e a empresa comunicou aos médicos que o gás era meramente irritante. Foram os próprios patologistas quem, depois das autópsias, revelaria a natureza e os efeitos do isocianeto de metilo.
A Dow Chemical tem, de resto, um negro historial de agressão das populações. Foi esta empresa que produziu o napalm utilizado no Vietnam, conta com um longo rol de destruições ambientais, uma delas Rocky Flats, um local ultra-secreto no Estado do Colorado nos Estados Unidos, onde teve fábricas entre 1952 e 1975, que é hoje um pesadelo ambiental. Verificou-se que um pesticida utilizado em larga escala e produzido pela mesma empresa – com o nome comercial de Dursban ou Lorsban - tem fortes efeitos tóxicos no sistema nervoso e foi banido pela Agência de Protecção do Ambiente americana em 2000. A sua saída do mercado seria faseada. No passado dia 20 de Dezembro de 2004, a mesma Agência concedeu à empresa mais três anos para a comercialização deste veneno. Ironicamente, foi este pesticida que, em 1972, substituíu no mercado o DDT depois de banido nos Estados Unidos.
Falei só de alguns casos exemplares, mas ninguém duvida de que a contaminação química e radioactiva se espalhou por todo o lado e nos afecta a todos. Trazemo-la nos nossos próprios corpos. Quanto aos acidentes com reactores nucleares, temos todos bem presentes os acontecimentos de Three Miles Island nos Estados Unidos e Chernobyl na União Soviética. E quanto não haveria a dizer sobre a poluição provocada pelas guerras actuais que interessam à indústria de armamento e às estratégias económicas de alguns governos?
É claro que as empresas não estão sozinhas na sua acção de destruição ambiental. Existem cumplicidades a muitos níveis: governos com interesses coincidentes, ou mesmo empresários participantes em governos, cientistas, médicos. Como exemplo, e para continuar a falar da Dow Chemical, o pesticida Dursban foi testado em prisioneiros de Nova Iorque entre 1971 e 1998, através de um laboratório de Lincoln, no Estado de Nebraska; um outro insecticida, o DBCP, foi estudado por
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médicos nos próprios trabalhadores da fábrica e verificaram que muitos tinham ficado estéreis.
4. Desde há uns anos, enfrentamos uma nova questão que deve ser discutida – a das novas biotecnologias. Nas palavras de Jeremy Rifkin, “É previsível que o nosso modo de vida sofra alterações mais fundamentais nas próximas décadas do que as que sofreu nos últimos mil anos.”4 Mas, como há pouco disse, são os organismos geneticamente modificados, ou para simplificar, os OGMs, que gostaria, agora, de discutir, na medida em que eles constituem um novo tipo de poluição: a poluição genética. Existem actualmente nos Estados Unidos e noutros países extensas plantações de soja, milho, arroz, batata, algodão, colza geneticamente modificados.
Na Natureza, os seres vivos ‘acasalam-se’ e produzem descendência; nesse processo, em que as espécies se perpetuam, ocorrem trocas genéticas – os descendentes contêm uma nova combinação das moléculas genéticas que os progenitores possuíam, mas não adquirem novos genes. Todos os indivíduos da mesma espécie partilham, em princípio, o mesmo conjunto de genes; no entanto, existe um grande número de variações moleculares de cada gene: chamamos-lhes alelos e são eles os principais responsáveis pela enorme variabilidade dos seres vivos. Na Natureza, há barreiras biológicas muito fortes: estas trocas, ou recombinações genéticas, só ocorrem entre indivíduos da mesma espécie, ou, em casos raros, de espécies próximas. Portanto, essas trocas ocorrem entre formas diferentes de genes que, digamos, são próprios dessas espécies.
Mas a biotecnologia permite hoje, por exemplo, isolar um gene de um peixe do Ártico, que confere resistência a temperaturas baixas, e colocá-lo no genoma do morango para que ele resista a temperaturas baixas ou introduzir no tomate um gene de escorpião, para lhe conferir resistência a insectos. Hoje, é virtualmente possível introduzir qualquer gene proveniente de vegetais, animais ou seres humanos em qualquer outro organismo. Genes relacionados com resistência a temperaturas altas ou baixas, a metais no solo, à seca ou ao alagamento, genes com efeitos antibióticos ou insecticidas, genes que incrementam ou retardam o
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crescimento, etc., podem ser utilizados nesta engenharia biológica. Está-se, assim, a introduzir um gene estranho, completamente novo, que não fazia parte do genoma daquela espécie. Há vários aspectos preocupantes de que mencionarei alguns.
Os genes introduzidos nos OGMs são frequentemente provenientes de bactérias ou de espécies não utilizadas como alimento e, geralmente, praticam-se tecnologias que impõem uma actividade intensa e contínua ao gene introduzido que, no organismo dador, ele não tinha. Na prática, isto significa que todas as espécies que interagem com essas culturas geneticamente modificadas – desde organismos degradadores, minhocas, insectos do solo, pequenos mamíferos, pássaros e seres humanos – serão expostos a vastas quantidades do produto do gene introduzido (proteinas), novos para a sua fisiologia. Respostas imunológicas ou alérgicas podem ter consequências graves e, em muitos casos, foram já detectadas. Soja geneticamente modificada da multinacional Monsanto e aprovada no Reino Unido em 1996 revelou provocar efeitos alérgicos e, nos ratos, efeitos inibidores do crescimento. Outra consequência já verificada é a do enorme aumento de insectos resistentes às substâncias insecticidas. Há, portanto, aspectos preocupantes não só para as espécies animais e vegetais, mas também para a espécie humana.
Há ainda a possibilidade – e ela temse verificado em vários casos – de contaminação entre OGMs e culturas convencionais. Ou seja, que plantas de uma cultura geneticamente modificada se cruzem com plantas de culturas convencionais, introduzindo-lhes – agora, por um meio ‘natural’ – o gene estranho. Estudos sobre esses cruzamentos mostram que o comportamento das plantas é muito diferente em laboratório (ou em pequenos terrenos de teste) e em vastas áreas. A contaminação é muito maior em grandes extensões de cultivo ao ar livre e pode ocorrer entre plantas situadas a quilómetros de distância. Torna-se, assim, impossível garantir que uma plantação convencional não contenha organismos geneticamente modificados; pode também acontecer que ervas daninhas, invasoras de culturas, adquiram um gene de resistência a algum agente agressor, tornando-se ‘super ervas daninhas’, uma praga difícil de combater; se as plantas modificadas tiverem um elevado poder de propagação, as plantas convencionais podem vir a ser
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exterminadas. Todos conhecemos os perigos das monoculturas e, em particular os biólogos, os perigos inerentes à diminuição da biodiversidade.
Um outro aspecto preocupante prende-se com a imprevisibilidade da reacção do organismo modificado. Os biólogos e os geneticistas, em particular, sabem que a actividade dos genes de um qualquer organismo está dependente de contextos internos e externos; há mesmo genes que, durante toda a vida de um organismo, podem nunca funcionar. Quer isto dizer que os genes de um qualquer ser vivo não funcionam permanentemente: a sua actividade está dependente de factores internos e externos à própria célula. Ora, a introdução de genes estranhos pode perturbar o funcionamento genético do organismo modificado e desencadear uma actividade anómala – por excesso ou inibição. Genes que antes funcionavam podem ficar ‘silenciados’; uma molécula celular que se encontrasse antes num estado ‘dormente’ pode entrar em actividade e causar doenças graves.
Os especialistas que levantam estas e outras questões alertam para o perigo da libertação de OGMs na Natureza sem ter havido estudos convenientes que nos garantam a sua segurança. Apelam a que os países adoptem o princípio da precaução, ou seja, que, para permitir a sua expansão, é preciso demonstrar primeiro a sua inoquidade. As grandes companhias que produzem os OGMs e os países que os adoptaram defendem o princípio inverso, afirmando que não devem ser banidos até que se prove a sua perigosidade. Seria o mesmo que dizer que deveríamos ter esperado pelo nascimento de oito mil bébés com os membros reduzidos antes da utilização da talidomida em grávidas ter sido proíbida. Como diz Jeremy Rifkin, as aplicações tecnocientíficas avançam mais depressa do que a ciência fundamental. A verdade é que não existe uma ciência para estudar estes novos fenómenos.
Porquê, então, tanta pressa na introdução e expansão a nível mundial dos OMGs? Evidentemente que se trata de um imenso negócio. Companhias como a Dupont, Monsanto, Novartis, Hoesch Chemical venderam parte ou todas as suas divisões químicas para se transformarem em empresas das tecnociências da vida. Estão no
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comércio genético. Tal como acontece com a indústria química, a luta é feroz, o infindável lucro é o objectivo.
Em 1998, o Dr. Arpad Pusztai deu uma entrevista ao programa ‘World in Action’ de uma televisão britânica, onde mencionava os efeitos dramáticos que observou em ratos jovens depois de alimentados durante dez dias com batatas onde se introduzira um gene de uma planta, que em inglês se chama snowdrops e que em português se pode chamar campânula-branca. Esta batata transgénica passa a produzir uma substância (lectina GNA) que a protege de insectos e vermes. A maioria dos ratos apresentava alterações significativas de peso e anomalias em vários orgão vitais: fígado, baço, estômago, timo. A resistência imunológica tinha baixado. Um grupo semelhante de ratos em número e idade, mantidos e alimentados exactamente da mesma forma, mas sem a batata geneticamente modificada, não apresentava qualquer anomalia. O Professor Philip James, director do Rowett Research Institute, em Aberdeen, na Escócia, onde o Dr. Pusztai trabalhava, acusou-o de divulgar informação enganosa, confiscou-lhe todos os seus dados científicos e notas para proceder a uma auditoria sobre a hipótese de fraude e ameaçou-o com um processo legal se ele fizesse declarações públicas. O Dr. Pusztai tomou a atitude que lhe restava: demitiu-se.
A Monsanto era um dos maiores patrocinadores dos projectos de investigação do Rowett Research Institute.
É claro que a Comissão que procederia à auditoria nunca emitiu qualquer relatório. Em contrapartida, um grupo de cientistas de diversos países voluntarizou-se para fazer uma revisão do trabalho de Pusztai e publicou uma declaração confirmando o rigor do seu trabalho e a validade dos resultados que ele tinha obtido sobre o efeito da batata transgénica nos ratos. Tudo o que Pusztai queria era continuar e alargar o trabalho até perceber melhor todo o processo da origem das anomalias nos ratos. Aparentemente, o Instituto não queria. Ou não podia.
Esta história levanta-nos outra questão. A do envolvimento das empresas na investigação científica e na universidade. Recentemente, tem-se falado muito na
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relação empresas/universidades como algo desejável e inquestionável. O único lamento centra-se no facto de as empresas portuguesas não se terem lançado nesse investimento. Julgo tratar-se de um assunto que merece a nossa atenção e que deve ser também discutido. Ainda que aparentemente lateral às problemáticas do ambiente, há interesses que se confundem.
Não estou só a pensar nos cientistas que trabalham directamente para as empresas e que se deparam com a hipótese de vir a perder o emprego se ‘desagradarem ao patrão’. Em todos os países desenvolvidos, existem hoje cientistas universitários que só desenvolvem projectos de investigação que interessam às empresas, pondo de lado temas de investigação que interessariam às populações em geral e, muitos deles, têm fundado as suas próprias empresas. Entraram no big business. A essa nova atitude de certos cientistas dos grandes centros de investigação está ligada a nova prática das patentes. Hoje, em muitos países, os cientistas que estudam as sequências dos genes ou um organismo que possa vir a ter interesse comercial pedem uma patente sobre a molécula genética ou sobre o organismo. Isto é, trata-se como ‘invenção’ matéria viva, que levou milénios de evolução até chegar à forma que hoje apresenta.
É exactamente o que as multinacionais também fazem com os organismos geneticamente modificados, com as sementes em particular. Desde que a humanidade começou a domesticar as plantas, aprendeu a não consumir toda a colheita; parte ficaria guardada para a sementeira do ano seguinte. As empresas das ciências da vida querem deter o poder sobre as sementes. Seguem várias estratégias para esse fim. Plantas ‘maravilha’ que se vendem aos agricultores juntamente com um pesticida, porque nessas plantas foi introduzido um gene que resiste a esse pesticida que a Companhia também lhes vende; plantas cujas sementes, mesmo que o agricultor as guarde e semeie, não se desenvolverão, porque contêm um gene que, a partir de certa fase da germinação, faz parar o desenvolvimento, etc. De resto, as empresas detêm a patente das sementes geneticamente modificadas. Como não ter urgência em que o negócio prospere?
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5. Toda esta problemática vai muito para além da defesa de interesses imediatos, corrupções, venalidades (embora os inclua). Está-lhe subjacente uma visão do mundo mais abrangente que perpassa muitas áreas de conhecimento e que, sem dúvida, de há umas décadas para cá, impregnou a ciência. Essa visão do mundo denuncia-se em certa terminologia utilizada. Por exemplo, a noção de ‘organismos indesejáveis’ é circunstancial e definida a partir de interesses humanos e sectoriais; não existem na Natureza organismos desejáveis ou indesejáveis. Que entidade suprema teria determinado que gatos e cães são desejáveis e pulgas e carraças não o são? Outra noção, a de ‘efeitos secundários’ aplicada a medicamentos ou a intervenções na agricultura é igualmente sugestiva. No caso dos medicamentos, por vezes, a bula que os acompanha informa-nos de que um qualquer medicamento actua, por hipótese, na cólica renal mas pode ter ‘efeitos secundários’, como perturbações cardíacas, reacções alérgicas, seja o que for. A leitura desses folhetos sugere que alguns farmacologistas encaram uma pessoa (ou qualquer outro ser vivo) como uma entidade composta por partes isoladas (orgãos, tecidos, células, genes), sem relação umas com as outras: o medicamento deveria dirigir-se para os rins mas, às vezes, engana-se e instala-se-nos no coração. Na verdade, qualquer medicamento ou qualquer intervenção médica, ainda que se destine a resolver um problema específico e o resolva, actua no organismo como um todo e cada organismo terá reacções próprias, específicas a essa intervenção.
Esta visão reducionista não se circunscreve à medicina; está presente nas práticas da engenharia genética quando vê o gene como uma entidade isolada que deve produzir na célula uma determinada substância, esquecendo que as células, os organismos, os ecossistemas, etc., são, ao seu nível, unidades, entidades interactuantes e interdependentes. A mesma noção está também presente na economia quando se encara o desemprego como um ‘efeito secundário’ de uma qualquer política económica ‘altamente benéfica para o país’. ‘Benéfica’, é claro, para um país hipotético onde cada pessoa que perdesse o emprego também deixasse de ser cidadão. Noções como estas sugerem um paralelo arrepiante com as recentes
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expressões ‘bombardeamentos cirúrgicos’ e ‘danos colaterais’, tão utilizadas pelos governos que se entretêm a fazer guerras pelo mundo fora.
A Europa tem resistido à introdução dos OGMs. Recentemente, pressões dos Estados Unidos da América, da Argentina e do Canadá têm levado a um recuo dessa posição. No entanto, muitas regiões de países europeus recusam a entrada desses organismos; o Algarve é uma delas. O Parlamento alemão aprovou recentemente (26 de Novembro passado) uma lei que obriga os agricultores de OGMs a registarem oficialmente os locais exactos dos seus campos e a um conjunto de regras que protegem as culturas convencionais; torna-os legalmente responsáveis por danos económicos que possam causar aos outros agricultores de culturas convencionais na vizinhança. Claro que já houve reacções contra a lei e reacções de regozijo, apesar das limitações de que esta lei ainda enferma.
6. Rifkin adverte-nos para os perigos inerentes à política das grandes companhias transnacionais que implica a prática de patentes: “As repercursões da passagem da mudança de relações de vendedor-comprador para as de fornecedor-utilizador já se fazem sentir, particularmente, na agricultura. As companhias transnacionais de ciências da vida têm vindo, nos recentes anos, silenciosamente a comprar as companhias independentes de sementes, permitindo-lhes um grande controlo sobre a semente da qual a produção agrícola depende. As companhias, então, modificam ligeiramente as sementes, ou retiram-lhes alguns genes, ou recombinam alguns genes que lhes garantem a patente sobre as suas ‘invenções’. O objectivo é controlar, sob a forma de propriedade intelectual, todo o stock de sementes do planeta.”5
Considerando as questões ambientais com que nos defrontamos, Immanuel Wallerstein é pessimista: não existe qualquer saída no contexto do presente sistema histórico. Mas o tom muda quando afirma que o actual sistema capitalista está em processo de falência. Para Wallerstein, estamos já num caminho de saída do própiro sistema. “A verdadeira questão com que estamos defrontados é qual será o resultado que iremos atingir. É aqui e agora que devemos levantar a bandeira da
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racionalidade substantiva, ao redor da qual nos devemos reunir. É necessário ter consciência de que uma vez aceite a importância de percorrer o caminho da racionalidade substantiva, este caminho é longo e árduo. Ele envolve, não só um novo sistema social, mas novas estruturas de conhecimento, nas quais a filosofia e as ciências não estejam jamais divorciadas (…). Se começarmos a percorrer esse caminho, ao mesmo tempo em termos do sistema social em que vivemos e das estruturas de conhecimento que usamos para o interpretar, temos de ter uma consciência clara de que estamos num início e de modo nenhum num final. Os começos são incertos, aventurosos e difíceis, mas promissores, que é o melhor que se pode alguma vez esperar. ”6
As pressões da sociedade civil são indispensáveis para o impedimento das práticas poluidoras contra a Natureza e contra os interesses das populações. Em Portugal, embora existam movimentos ecologistas e ONGs que lutam por muitos desses interesses, a população em geral continua largamente desinformada. É urgente promover o debate alargado entre a população e os especialistas, técnicos, cientistas. O envolvimento destes é indispensável. No entanto, as decisões nunca deverão ser técnicas: terão que ser políticas.
Referências
1. Carson, Rachel. Silent Spring. Boston: Houghton Mifflin, 1962.
2. Lear, Linda. Rachel Carson. Witness for Nature. London: Allen Lane. The Penguin Press, 1997.
3. Wallerstein, Immanuel. “Ecology and Capitalist Costs of Production: No Exit”. Keynote address at PEWS XXI, The Global Environment and the World-System. Univ. of California, Santa Cruz, Apr. 3-5, 1997.
4. Rifkin, Jeremy. The Biotech Century.New York: Tarcher/Putnam, 1998, p. 1.
5. Rifkin, Jeremy. The Age of Access. The New Culture of Hypercapitalism where All of Life is a Paid-for Experience. New York: Tarcher/Putnam, 2000, p. 66.
6. Wallerstein, Immanuel. Op. cit.
* O conteúdo deste texto foi objecto de uma comunicação apresentada ao Forum Alternativa para a Mudança, que se realizou na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa a 15 de Janeiro de 2005
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