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Um dia ele quis isolar-se, fechar-se de tudo o mundo, fechar as portas, fechar as portadas, puxar os reposteiros pesados das janelas. Sepultar-se da sua fuga. Rasgou todas as fotos e todos os livros, todas as folhas e velhos registos, empilho-os numa grande pilha onde derramou litros de boa gasolina e ali ficou no meio da escuridão, pegando na pequena caixa.
Com um ruído a escuridão quebrou-se, acendeu um pequeno fosforo. Como pequena e frágil era aquela chama presa a um toco da madeira, e era bonita, e como era bonita no seu tom violáceo …e ele parecia encantado com o fosforo, mas mesmo assim deixou-o cair. Lentamente deixou-o escapar por entre os seus dedos, libertou-o, e ele caiu sobre a pilha de coisas humedecidas em combustível, e explosivamente tudo foi tomado pela cor, pelas chamas, pelo cor que inundava a escuridão do local.
E ele riu-se, e ele dançou em redor das altas labaredas e cantava as velhas canções infantis, e saltava e fazia altos pinos, e fê-lo até as forças acabarem, e fê-lo até as chamas se extinguirem sobre si mesmo num monte de cinzas e por fim caiu.
Tombou com todo o seu corpo, com toda a força sobre o tabuado, e facilmente as lágrimas começaram a jorrar-lhe da cara. Era uma torrente, uma levada constante de água salobra que ia de encontro a pilhas de brasas ainda vivas e que se apagavam com estampidos, e os pequenos pontos de luz rubra que ainda resistiam eram apagadas com toda aquela água e por fim ele ficou na total escuridão quando as cinzas formaram uma amálgama com as lágrimas e ele deixou-se ficar.
Deixou-se ficar a espera que viessem buscar, nas trevas, soluçando, de olhos secos, já não tinha nada que fazer senão esperar…e passaram horas, e passavam dias e sobre ele passava todo o tempo como se não passasse. Esperava, desejava somente que fosse rápida, que fosse rápida a passar sobre ele.
Não soube se adormeceu, se foi o seu corpo que entrou em qualquer letargia, se talvez aquilo fosse como um coma, uma catalepsia que o seu cérebro lhe impunha, uma quase morte que, não o sendo, tornava tudo ainda mais brutal…mas mesmo assim, mas naquele estado a sua iris notou, sentiu aquela pequena diferença de tonalidade na escuridão.
O céu cérebro percebeu que algo se movia na frente do seu olho, e era só um ponto, uma mínima coisa de luz que insistia em passar em frente do seu olhar.
Não ligou, não podia ligar um corpo inanimado não liga a pequenos pontos de luz que brincam na sua frente como um desafio, como uma chamada para uma brincadeira e não se chama um corpo prostrado para nenhuma brincadeira.
Mas a alma, ou lá o que quer que pouco mais restasse daquele corpo de onde o próprio ar já se escapava, sempre havia sido algo curioso e somente a curiosidade era capaz de fazer ceder aquele corpo inanimado, só a curiosidade conseguia quebrar o rigor-mortis e como se nada fosse fez o pequeno e gélido dedo médio mexer-se um pouco, afinal era em seu redor que o ponto de luz teimava em brincar, em redor daquele insignificante dedo.
Tentou tocar-lhe, tentava tocar-lhe, mas o pequeno reflexo fugia a cada investida de toque e a cada tentativa nova frustração, nova inquietação. Quando deu por si já não era o dedo, mas toda a mão que tentava apanhar o fugidio ponto de luz e o corpo ganhava uma nova força, ganhava à inação como se nada fosse, como se nunca tivesse existido resistência e já estava sentado e o sangue, que afinal ainda existia, voltava ao seu fluxo quente, e ele já tentava apanhar com as duas mãos o ponto, os pontos que agora se havia multiplicado e eram uma fileira, uma organizada fileira de pontos de luz, um fio cintilante de luz, tocado e reflectido pelas ínfimas partículas de pó que se levantava das cinzas do seu corpo.
E os olhos seguiam a linha de luz como encantada, como extasiada, reassumindo totalmente e perfeitamente cada uma das funções do seu corpo até então estropiado, e levantou-se, as pernas fraquejaram, a cabeça pesava e parecia tonta, mas cambaleou ao longo do rasto que se formava no ar e caminhava descalço pelos destroços, pisava as cinzas sobre as quais passava atrás da linha que o possuía, que o levava até a parede enegrecida pelo fumo da grande fogueira.
Mas eras mesmo da parede que se escapava o fio de luz. Era do reposteiro de veludo tão bem fechado que o fio de luz se escapava.
A medo não lhe quis tocar. Ficou a admira-lo com os sentidos, sentia o cheiro a queimado, sentia por fim na sua mão, olhou pelo pequeno e insignificante buraco e finalmente sorriu…
Deu dois passos atras e soltou uma gargalhada que vibrou pelo espaço, sentou-se no chão, deixou que a linha de luz que aumentara de intensidade o atingisse bem na cara, no meio dos olhos fechados, e aquela pequena luz, aquela luz que entrava de fora, finalmente fez-se lógica, para ele significava tudo e sorrindo percebia.
E percebeu que a cada novo sorrir, sorrir verdadeiro e franco, vindo de dentro, do seu ser magoado, que cada vez que a linha de luz o fazia gargalhar dentro das ruínas o fio de luz aumentava, ficava maior, e o vazia sentir ainda mais quente, o que aumentava inesperadamente aquela sensação de alegria, de calor, de conforto que entrava dentro do seu peito e a cada sorrir o buraco aumentava, e o efeito era exponencial e a vida reentrava nele como se fosse ar, com a mesma facilidade, com a mesma felicidade.
E ria-se, ria-se tanto que o reposteiro não aguentou, o rasgão foi abrindo e pedaços enormes caiam no meio da poeira do chão, inundando tudo de luz, já não era uma linha de luz, mas tudo era luz e ele ficou sentado a sorrir, porque daquela nova janela, daquela que ele próprio abrira, entrava a jorros a luz e ele ficou ali, ali sentado, a olhar, a mirar a luz, a olhar para a esperança que aquela luz era.