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No fim da primavera a casa era caiada, arrancava-se o salgadiço do inverno que ficava agarrado as paredes e voltava aos alvores da sua brancura.
No início do verão as portadas eram abertas, o chão afagado, o pó expulso, os estofos batidos, as cadeiras de verga envernizadas e postas no alpendre, os cortinados de linho fino e branco agitavam-se quando naquele fim de tarde, a casa esperava por ele.
Pela estrada que vinha ao longo da costa, de norte para sul, percorrendo as falésias e serpenteando pelo meio dos pinhais, levantava-se um nuvem de pó, o som que o mar abafava de um carro.
Os pinheirais agitavam-se com a brisa, soltavam o cheiro a resina e a terra seca, os arbustos rasteiros perfilavam-se ao longo da estrada, de alecrim e tomilho que apimentavam e refrescavam o ar.
A casa via-se ao longe, e o seu olhar estava preso a ela fazia algumas léguas a sua magia, a velha magia que sempre fizera, de magnetizar, de prender nos seus idílios.
Parou o carro, deixou-se ser tomado pela nostalgia do passado, fechou os olhos na esperança de ouvir algo mais do que o silêncio, mas era somente isso, o silêncio que o rodeava ali no cimo do promontório onde a velha casa cuidada e pintada e arejada e pronta a ser abrigo.
Tirou a mala de dentro do carro, coisa pouca que o verão pouco pede, tirou a mala rígida onde trazia sempre, afinal, aquela que era a sua velha companhia, a máquina de escrever. Os pés faziam as tábuas gemer, talvez uma qualquer forma de a casa felicitar aquele regresso.
Pousou a mala da roupa no chão, a máquina de escrever sobre a velha secretaria que se debruçava pela janela grande sobre o mar. Sobre ela empilhavam-se velhos papeis, memórias antigas, dactilografadas por aquela mesma máquina num espaço de tempo tão longínquo que as pilhas amareleciam ao sabor dos velhos tempos, talvez guardando dentro delas os sorrisos, os sorrisos, os cheiros do tempo em que haviam sido brancas e novas.
Pegou nelas, desfolho-as, não percebeu o que estavam escritas nelas, nada daquilo tinha sentido. Levo-as consigo, e com algo fresco que tirou do frigorífico, ficou sentado na velha cadeira de baloiço, olhando o mar, deixando a madeixa rebelde de cabelo que lhe dançava sobre a testa ao sabor do vento.
Deixou-se ficar olhando o sol que tombava, as cores de fogo que se espalhavam pelas falésias, pelas pedras altas que se erguiam do mar.
Sobre as pernas estava a pilha de folhas, presas sobre a mão, folhas que o vento queria para si a medida que o sol descia e sobre a terra a calma e o rubro tomava contava de tudo. Levantou-se quando por fim Apolo chegava as águas, por fim tirou a mão da resma de folhas, por fim o vento reclamou aquilo que era seu por direito e, com uma rajada quente vinda de sul, desfez a pilha de folhas, levou pelo ar aqueles papéis amarelos que tomados da cor do por do sol semelhavam-se a penas, a penas de um pássaro de fogo que se erguia dos profundezas dele e se tornava finalmente livre.
Espalhavam-se pelo ar, lançavam-se ao mar, ficavam presas em algumas urzes secas e eram fustigadas pelo vento. Quando por fim o céu se cobriu de anil, de púrpura e das cores do crepúsculo, só nessa altura ele entrou em casa, liberto de todo aquele peso, feliz por se ter conseguido agarrar a terra, feliz por não se ter lançado ele mesmo ao vento.
Sentou-se a secretaria, ligou a luz do candeeiro de ferro, destapou a máquina de escrever, tirou folhas novas, brancas e prontas a novas coisas, desejosas de tinta como ele estava desejoso afinal de vida.
Fechou os olhos, cerrou os dedos, abriu as mãos sobre o teclado e começou a encher a casa daqueles ruídos, do bater de teclas, do alegre matraquear das teclas que tornava inaudível o som do mar, que tornava surdos o som das folhas de papel soltas e livres que batiam ainda contra as janelas e as paredes brancas da casa que se cobria agora pelo estrelado céu.
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