A fatura dos benefícios diretos e indiretos que o governo concede a parlamentares, servidores e funcionários com cargos comissionados para cobrir suas despesas com habitação é uma conta salgada e difícil de ser acompanhada. Só com auxílio-moradia, os gastos passam de R$ 1 bilhão. No caso dos imóveis oficiais, que não têm uma rubrica específica no Orçamento, eles vão além da manutenção dos apartamentos e passam por liminares contestadas no STF e inquilinos indesejados que o governo tenta despejar.
Em 2016, os Três Poderes gastaram R$ 1,145 bilhão com auxílio-moradia, segundo cálculo feito para a BBC Brasil pela organização Contas Abertas, de monitoramento de dinheiro público. De janeiro a agosto de 2017, foram R$ 744 milhões, contra R$ 500 milhões no mesmo período em 2015 (em valores correntes, ou seja, sem atualizar pela inflação).
Esses R$ 1,145 bilhão seriam suficientes para custear, durante um ano, por exemplo, o bolsa-aluguel de 238,5 mil famílias de baixa renda em São Paulo, cidade com o maior déficit habitacional do país.
No caso dos imóveis funcionais, é difícil contabilizar quanto a União gasta com isso, já que esses dados não estão agregados no Orçamento. O que há são empenhos esporádicos de recursos. A Câmara, por exemplo, separou em junho R$ 2,5 milhões para gastar com a limpeza e a portaria de seus apartamentos funcionais, identificou o Contas Abertas.
Além do debate sobre o reequilíbrio das contas públicas, cada vez mais premente diante de quatro anos consecutivos de déficit do governo, esse tema ganhou destaque em agosto, quando o blog da jornalista da Globonews Andreia Sadi revelou que a assessora da primeira-dama Marcela Temer, Cintia Borba, responsável por supervisionar a rouparia e a limpeza do Palácio do Jaburu, passou na frente de outros servidores e conseguiu um apartamento custeado pelo Estado na capital federal.
O governo respondeu que a assessora da primeira-dama cumpriu os pré-requisitos para ocupar o apartamento funcional: tem cargo comissionado de alto nível e não é proprietária de imóvel em Brasília, entre outros.
Borba ocupa, assim, um dos 76 imóveis residenciais da Secretaria de Administração da Presidência da República, cedidos preferencialmente a ministros e, em seguida, a servidores em cargos de "natureza especial" e comissionados.
Quem mais, em Brasília, tem direito ao benefício de imóveis funcionais ou auxílio-aluguel? A lista é longa - inclui membros do Legislativo, do Executivo e do Judiciário.
A seguir, a BBC Brasil explica como esse sistema funciona:
Governo tenta despejar, mas não consegue
No âmbito do governo federal, a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), do Ministério do Planejamento, administra outros 544 imóveis, ocupados por ministros e servidores de ministérios, agências governamentais, da Advocacia-Geral da União e da própria Presidência. Cabe aos ocupantes pagar condomínio e taxas como água e luz.
Cada apartamento custa R$ 12 mil por ano ao governo em manutenção, segundo a SPU, e 230 deles estão desocupados.
Para reduzir as despesas, a secretaria colocou à venda neste ano 24 apartamentos e uma casa na capital federal, que renderam R$ 15,7 milhões à União. Um segundo leilão é previsto para este mês.
Há outros 525 imóveis sob o controle do Itamaraty e 362 sob o Ministério da Defesa, ocupados, por exemplo, por diplomatas, oficiais de Chancelaria e integrantes das Forças Armadas.
Acontece que eles são obrigados, por lei, a desocupar o imóvel em 30 dias caso sejam exonerados, licenciados ou aposentados do serviço público, mas isso nem sempre acontece.
A Advocacia-Geral da União informa que correm na Justiça centenas de ações de reintegração de posse de imóveis funcionais - tentativas do governo de recuperar imóveis que considera ocupados ilegalmente. Cerca de 120 desses casos estão pendentes, aguardando decisão judicial.
"Os réus invocam argumentos emocionais, dizendo 'não tenho para onde ir', ou alegam que vão ocupar outra função pública no futuro, e há os filhos que ocupam o imóvel de pais falecidos, ex-servidores", explica à BBC Brasil a advogada da União Ludmila Tito Fudoli.
A União costuma pedir, além da liberação do imóvel, uma indenização pela ocupação irregular, mas muitas ações do tipo se arrastam na Justiça.
"É um total descaso com a sociedade. Algumas pessoas ficam anos (irregularmente) nesses imóveis, enquanto há uma fila de servidores aguardando apartamentos vagos e forçando a União a pagar auxílio-moradia", diz Tito Fudoli. "E muitos deixam prejuízo, devendo milhares de reais em taxa de condomínio, por exemplo."
Entre os casos em tramitação na Justiça estão, por exemplo, o de um servidor público morto em 1994, cujos parentes continuam morando no imóvel mesmo após a Justiça determinar a reintegração de posse; o de uma servidora acusada de ocupar irregularmente um imóvel por 17 anos, resultando em um pedido de indenização de R$ 1,2 milhão pela AGU; e o de um ex-funcionário do Senado que foi condenado a pagar R$ 80 mil à União por taxas de condomínio devidas durante sete anos de ocupação irregular de um apartamento. Em decisão inédita, a Justiça determinou que o valor seja descontado da aposentadoria do ex-servidor.
Juízes federais também têm direito
A possibilidade de morar às custas do contribuinte também se estende a milhares de membros do Judiciário, na forma de um bilionário auxílio-moradia que se sustenta por uma liminar de 2014.
A decisão provisória, assinada pelo ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, determinou um auxílio-moradia de R$ 4.377 a todos os juízes federais em atividade no país, decisão que, por simetria, se estendeu a membros do Ministério Público e dos Tribunais de Contas - inclusive os que têm residência própria em Brasília.
Estima-se que em torno de 17 mil magistrados e 13 mil procuradores tenham direito ao benefício.
Críticos viram na medida uma forma do Judiciário elevar salários num momento de congelamento do orçamento. O Contas Abertas estima que o custo da liminar, de 2014 até hoje, possa chegar a R$ 4,5 bilhões.
"Chega a ser uma afronta à população de um país onde, entre tantos outros infortúnios, o piso salarial do professor é metade do benefício pago aos magistrados: R$ 2.297", diz uma carta aberta do Contas Abertas à ministra Carmen Lúcia, presidente do STF, para pressionar a Corte a votar o tema em definitivo.
"O valor vem sendo pago mesmo para quem mora na mesma cidade onde trabalha e, até mesmo, para quem tem residência própria", queixa-se a Contas Abertas.
A Associação Nacional dos Servidores do Ministério Público (Ansemp), que também questionou os pagamentos, afirmou que, por conta da liminar, os gastos com auxílio moradia do MP do Ceará, por exemplo, passaram de R$ 2,7 milhões em 2013 para R$ 23,4 milhões em 2016.
Senadores recebem R$5,5 mil por mês para custear casa
Deputados e senadores também têm, entre os benefícios do cargo, o direito a apartamento funcional ou, na ausência deste, a auxílio moradia.
O Senado tem, segundo sua assessoria de imprensa, 72 apartamentos funcionais na Asa Sul (área nobre de Brasília) e uma casa para seu presidente.
"Desses imóveis, 51 estão ocupados por senadores e três, por deputados federais. Outros 18 estão em uso por não parlamentares (ministros de Estado, do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal de Contas da União e desembargadores do Tribunal Regional Federal)", informa a assessoria, que diz que a despesa mensal por imóvel ocupado é de R$ 3,8 mil.
O auxílio-moradia, pago atualmente a cerca de 15 senadores que não usam imóvel funcional, é de R$ 5,5 mil por mês.
Em 2016, o Senado diz ter gasto R$ 1,2 milhão com essa despesa, mas esclarece que não há como calcular o quanto foi gasto total com imóveis funcionais, porque "não há sistema de custos implantado que permita evidenciar a parcela referente especificamente a eles, tampouco há metodologia definida para realizar o rateio dessas despesas".
A Câmara, por sua vez, possui 432 apartamentos, 345 deles ocupados por deputados atualmente.
Muitos estavam bastante degradados até uma longa reforma - que durou cerca de dez anos - ter restaurado de caixas d'água até esquadrias em 216 deles, a um custo médio de R$ 600 mil cada (cerca de R$ 129 milhões no total). Uma outra parte aguarda nova reforma, ainda sem data para ocorrer.
Quando o apartamento muda de mãos (um deputado sai e outro entra), também costuma-se trocar utensílios e móveis, e os velhos vão para um depósito para depois serem leiloados.
"Agora, 100% desses imóveis reformados estão ocupados (por deputados), o que mostra que a reforma cumpriu seu objetivo", explica à BBC Brasil Carlos Laranjeiras, assessor técnico da 4ª Secretaria da Câmara, acrescentando que o custo dos imóveis funcionais - estimado em R$ 3,4 mil mensais por deputado - é menos oneroso do que o gasto da Câmara com auxílio moradia (de R$ 4,2 mil por parlamentar por mês).
Faz sentido pagar casa para servidores?
"Há quem vislumbre que acabar com os apartamentos funcionais liberaria energia da máquina pública (que não precisaria mais administrar os imóveis), mas eu acho que vale a pena. Um dos problemas (com o fim dos imóveis) seria a transição: desfazer-se dos apartamentos envolveria negociação entre os parlamentares e com a Secretaria de Patrimônio da União, o que pode ser um processo longo e oneroso à administração pública. Poderia levar anos", argumenta Laranjeiras.
Já Gil Castelo Branco, secretário-geral da Contas Abertas, acha que os apartamentos funcionais de todos os Poderes perderam o sentido.
"Não é papel do Estado atuar como imobiliária, e ele faz isso (de modo) muito malfeito. Muitos deputados preferem ficar em flats com o auxílio-moradia. E você acha que o deputado (que usa apartamento funcional) fica com a geladeira e o fogão velho do ocupante anterior? Troca-se a cada ocupante. O gasto com isso não é papel do Estado", defende. "Não é algo que vai cobrir o rombo do Orçamento - não fará nem cócegas. Mas é uma questão de princípios."
Muitos defendem que sequer o auxílio-moradia seja devido. Uma proposta popular pedindo o fim do benefício a deputados, senadores e juízes recebeu o apoio de 253 mil cidadãos e foi transformada em sugestão de projeto de lei, atualmente aguardando a designação de um relator na Comissão de Direitos Humanos do Senado.
"Se o fim do auxílio-moradia para deputados, senadores e juízes for aprovado, estaremos dando início à moralização na utilização dos recursos provenientes dos impostos pagos pelo povo. Um país mais justo, igualitário e sem privilégios", diz a proposição.
Por Paula Adamo Idoeta
Fonte: BBC Brasil