Temos que admitir outra possibilidade de conceituar o limiar. Pois sim, por um lado podemos vê-lo como essa zona de instabilidade que se cria entre as extremidades. Mas poderíamos vê-lo de outra forma. Poderíamos continuar a supô-lo com esse seu caráter inquieto, mas sem ter de associá-lo necessariamente ao movimento das extremidades ou sem ter que caracterizá-lo sempre em sua relação com as mesmas. Assim, dessa forma, desconsiderando-se a dinâmica constitutiva do limiar, pode-se passar a focar em suas possibilidades efetivas de atuação (que não é totalmente o que se fez por aqui, pois se ateve também à dinâmica constitutiva).
O limiar poderia então, por esse artifício, ser visto como autônomo. Poderíamos vê-lo ainda de maneira mais abrangente, alcançando grande parte do território daquilo que poderíamos denominar de posições. Já foi dito que o limiar é o que está entre - e supomos que seja entre os extremos. Mas devemos considerar que esse "entre" não é unívoco, não é singular. A diversidade de tal interstício se daria, imaginamos, ao ser englobar uma vasta gradação que perpassa diferentes posições (apenas duas ou até muito mais de duas). É como se o limiar tivesse um território mais real, que seria bem pequeno, e outro imensamente maior, que seria seu território potencial (a que, por convenção, chamaremos de interstício). Portanto, para evitarmos confusão, é bom referirmo-nos ao limiar como sendo essa região mais estreita e mais "magnética" do interstício.
Os extremos seriam os ápices das posições. Talvez os ápices pudessem ser confundidos com os limiares, mas acreditamos que deveríamos imaginar que poderia haver um ápice final para as posições que não se confudisse com nenhum limiar e que, portanto, não admitisse nenhum ponto de encontro com outras posições. O ápice não é limiar justamente porque não admite ponto de encontro, não admite vislumbrar minimante aproximar-se com o que lhe é estranho ou diferente.
Pensamos, muitas vezes, em termos de tudo ou nada, direita ou esquerda, ou seja, de forma bipolar. Mas existem outra posições possivelmente, como aquela à nordeste e aquela à sudoeste (e não só aquela a norte e aquela a sul, ou aquela à direita ou aquela à esquerda, ou aquela do bem e aquela do mal, ou aquela do dia e aquela da noite), e em todas elas poderíamos observar ápices. Ápices são o que mais ferrenhamente assegura a defesa de uma posição, são suas proposições mais fervorosas, mais defendidas, mais guarnecidas com as armas que cada uma dessas posições possuem. Os apices estão relacionados aos fundamentos, às regras básicas de uma posição - talvez sejam idênticos a eles.
Existiriam, portanto, outras posições. As coisas não se dividiriam da maneira dual como nos habituamos a vê-las. As posições podem ser muitas e poderíamos aqui convecionar que elas abrangeriam todas as coisas. Nas posições, como dito, encontramos os extremos (ápices). Os pontos cardeiais parecem ser uma boa maneira de visualizarmos isso. A divisão cardeal se expressa em várias posições que se definem pelos seus extremos, mas não se limitam a eles. Certamente haverá uma linha fina, fronteiriça, a separar essas posições cardeais das outras que lhe são vizinhas - e chamaremos essas regiões de limiares.
Por certo poderemos imaginar que próximo a essa região fronteiriça os pontos que aí se avizinham - embora coagidos a se definirem como pertencentes às áreas cardeais a que pertencem - perceberão não haver muita divergência e diversidade entre eles, perceberão que a qualificação que lhes é dada não lhes diz a verdade sobre si. Perceberão que não são tão diferentes desses outros pontos que se avistam, que se avizilham e que lhes parecem mais parecidos do que outros cuja rotulação é idêntica a si (ou semelhante), mas que em quase nada lhes são próximos.
Diante do que temos apresentado - e apenas a título de depuração de nossas idéias - parece claro que o ponto cardeal denominado norte, por exemplo, é um nome genérico demais, pois acabamos por esquecermos que o que existe, de fato, é uma vasta área que, por alguma convenção, é entendida como concernente a isso que se chama norte. Também podemos perceber que essa convenção resulta da hipótese de que essa vasta área possuiria um ponto limite, um extremo, onde acabaria o norte . E esse norte se definiria e se aperceberia como tal justamente por ver-se como um ponto extremo e em total oposição ao outro ponto extremo (que se costuma chamar de sul), já que ambos estão simetricamente distantes em relação a um ponto central. É como se constituísse dessa forma um espelho para além da linha fronteiriça entre eles, no qual cada uma das posições poderia ver seu reverso refletido.
Também se define esse norte por sua relação com outras áreas adjacentes e outras mais distantes, todas elas perfazendo todo o campo possível e imaginável das coisas, englobando-as totalmente e, ao mesmo tempo, limitando-as unicamente nessas rotuações (os pontos cardeais) que não só arrogam-se no direito de classificar todas as coisas, como não admitem que outras classificações se imponham a eles - ou, quando admitem, elas não tem o mesmo peso e a mesma autoridade que eles possuem em definirem a localização e o lugar das coisas.
As posições se qualificam a partir de sua relação com os extremos (ápices), portanto. Os extremos se definem, especialmente, na sua relação com o outro extremo que lhe é simetricamente oposto. É a distância entre os extremos que lhes atribuem essa natureza conflituosa que possuem. O limiar é o que dá a noção tamanha dessa distância, já que quanto maior o espaço entre os extremos, mais ele se desenvolve.
A progressiva distância entre os extremos distancia também elementos das posições e, no interstício entre os extremos, surge o limiar. Esse notável vácuo (o limiar) é como a membrana da céula que possibilitará as operações orgânicas entre o interior e exterior, entre um lado e outro. Mas a confluência não se dá, inicialmente, para dentro das posições, ela se dá no próprio limiar - para dentro dele. É para ele que emergem as substâncias menos arrefecidas às posições e que constituirão algo de novo que ainda não tinha espaço para nascer. É possível imaginar que, após o estabelecimento de uma congregação no interior do limiar, a tendência é uma nova dispersão (talvez causada por algum evento radical, como o da explosão que originou o universo), que depois suscitará um novo limiar e assim sucessivamente e infinitamente.
O Caminho Desconhecido (parte 44)
Os Anos Jovens sucederam 73 - há quem diga que sucederam 2088, com a Última Derrocada - e representaram o início de uma nova época - ao menos no cenário político, pode-se dizer que as mudanças deram-se nessa datação. Época do novo regime e época do fim das oligarquias partidárias (do fim da Monarquia dos Partidos - era como preferiam alguns mais radicais).
E assim o é porque, como sabemos, a participação popular tornou-se obrigatória na própria decisão de quais pessoas seriam escolhidas para serem candidatos do partidos, de modo que as convenções partidárias, para escolha de concorrentes aos cargos políticos, tornaram-se quase idênticas às próprias eleições.
O Caminho Desconhecido (parte 45)
Quando se associa as entidades a adjetivos assim se faz porque os adjetivos são justamente isso que qualificam os nomes das coisas. Falou-se bem: o nome das coisas, não as coisas, já que não parece haver uma qualificação que possa, de uma vez por todas, dizer o que as coisas são. O que se pode dizer sobre as coisas abrange uma gama infinita de possibilidades e, de tudo o que se diz sobre elas, parece que nada nos causa tanta impressão do que os adjetivos. Se dizemos que uma coisa é boa ou má isso já nos parece dizer muito mais do que uma série de descrições que poderíamos atribuir à mesma. Evidente que isso faz com que nos perguntemos sobre uma série de questões como, justamente, essa capacidade "enganadora" do adjetivo em nos fazer ter uma impressão total sobre as coisas; impressão que, embora superficial, posiciona muito bem o lugar daquilo que o adjetivo qualifica. Isso deve se dar pelo peso que os adjetivos têm. Peso que não advém deles apenas mas de toda rede de entidades a que ele pertence.
O adjetivo "bom" ou o adjetivo "mal" estão respectivamente associados a uma vastíssima gama de nomes, imagens, sons e outras entidades - e, a estes todos, nós atribuímos a qualidade de bons ou maus. Portanto, dizer que uma entidade é boa, é equipará-la, de certa forma, a todas as outras entidades que também julgamos como boas. É como se disséssemos que tal coisa é boa como a coisa A, como a B, a C, a D... a X, a Y e a Z. É como se a ligássemos a uma rede muito maior do que a que seria ligá-la a uma descrição meramente nominal, sem muito valor de qualificação, sem algum adjetivo de importância. Mas o problema do adjetivo está justamente aí, nessa sua natureza globalizante, pois sabemos que as coisas não se equiparam tão amigavelmente, sem delongas, sem apartes e sem ressalvas, como ele nos faz supor. Não que não possam haver outros tipos de palavras que tenham esse poder de qualificação (substantivos, pronomes, advérbios, etc.), mas é que geralmente - nos parece - são os adjetivos que detém essa capacidade mais global e classificatória.
Resumindo um pouco o que estamos discutindo, podemos ratificar que o adjetivo é o que qualifica um nome, uma imagem, um som (mais do que as coisas, pois estas estão sempre além de qualquer qualificação); mas, como já dito, não só o adjetivo qualifica, pois outros nomes também exercem esse papel, em geral de forma menos totalizante e, por isso mesmo, sem rotularem tanto as entidades. É de se frisar também que podemos qualificar as coisas de várias formas, talvez infinitamente, e nos parece que é essa qualificação (por nomes, adjetivos, por sons, por outras entidades) que é o que forma isso que chamamos de entidades.
As entidades são o resultado da qualificação das coisas. Qualificação que deva se dar por meios inimagináveis. Por exemplo, podemos imaginar que uma entidade possa qualificar a outra. Isso parece acontecer quando imagens e sons se misturam. Qualificação que ocorre nos dois sentidos - no exemplo citado, as imagens acabam por qualificar os sons e estes as imagens.
Assim por mais poder de qualificação que tenha um adjetivo não é incorreto afirmar que ele acaba por ser afetado por aquilo a que ele qualifica. Ao dizer que a mesa é boa, a idéia "boa", esse adjetivo, passará, a englobar a noção de mesa. Evidente que num adjetivo tão poderoso como "boa", a pobre mesa quase nada intereferirá na afetação que tal adjetivo trará a elementos futuros. A menos, talvez, que a imagem da "boa mesa" passasse a ser algo frequente nas consciências a tal ponto que ao se falar de "boa" logo se associasse o termo a "mesa".
Sendo assim, inexorável parece que a frequência com que se associa uma entidade à outra, faz com que elas permaneçam indefinidamente associadas, mesmo que apenas uma delas seja invocada para descrever ou adjetivar outra entidade qualquer. Quando uma é invocada para qualificar um objeto, quase instintivamente a outra é ligada a ele, mesmo que quase inconscientemente. Verdade que não só a frequência é capaz desse efeito, mas o "impacto" de entidades. Como se uma exposição "traumática" (muitas vezes prazerosa) às entidades fosse capaz de causar essa "marca" na consciência e no espírito, de modo a que sempre associemos uma a outra, já que ambas estavam juntas, como que uma coisa só, naquele dado momento que nos proporcionou aquela experiência única.
O Caminho Desconhecido (parte 46)
Falta uma parte de nós. Ela ficou solta por aí, não a encontramos. Nos dias de glória para nossas esperanças nós nos achávamos inteiros. Agora há apenas essa meia-luz, esse quase-ser, essa quase-vida, esse constante perecer. Mas o nosso maior temor é perder essa meia parte que nos resta. Como já perdemos a primeira, nada garante que a outra parte se conservará.
* * *
Tu, ó noite, que regozija-te de tua escuridão, lembra-te que é a falta de claridade que te mantém assim. Lembra-te que essa tua névoa obscura não é mérito teu. Lembra que você é fruto da negligência do dia.
Tu, ó dia, não te maravilhe com teu esplendor. Lembra-te que não há reis sem súditos. Lembra-te que tua glória advém de nossa servidão. Lembra-te que a necessidade nos impõe a ti.
Tu, ó homem, lembra-te que não és o dia nem a noite. Lembra-te que não és senhor de si; mas se fosse bem verdade que não serias o que é. Lembra-te de tua carga, de teu peso, de teu penar. Lembra-te que não és pleno, e, por isso, com mais razão deves se inquietar.
Tu que não és dia, que não és noite, que não és homem. Lança sobre o mundo a vontade de tua Razão. Tu que sabes de tudo, que sabes de todos, dai a cada um o que merece. Dai ao dia a perfeição que tanto persegue, a perfeição sem tolerância. Dai à noite uma escuridão sem fim e sem amanhecer. Deixe ao homem viver em plenitude a sua mortalidade. Deixe que ele siga seu frágil trajeto. Deixe-o ser humano.
O Caminho Desconhecido (parte 47)
Há outra forma de se ver a transcendência. Não como aquilo difícil de delinear - que é como geralmente se pensa a transcendência -, mas como aquilo que não existe, a não ser na imaginação. Esta última é que foi a transcendência mais combatida e criticada por alguns, mais reutilizada e modificada por outros, de acordo com as intenções dos diferentes grupos do Imanente. Mas essa transcendência, apesar de todas as considerações críticas à mesma, ainda continua sendo uma alternativa ao intelecto, e os próprios grupos do Imanente, como já dito, se valeram dela - não temos dúvida -, mesmo que fosse para levá-la para fronteiras e searas nunca antes visitadas.
Essa transcendência do que não existe pode equivaler-se a um inexistente que se encontra em estado imaterial porque outra coisa lhe toma um lugar que poderia ou deveria ser seu. Ou pode equivaler-se a algo que nunca existiu ou algo que é impossível que exista. Essa coisa que nunca se viu, ou que não se vê mais, poderia estar entre nós ou não - em todo caso, não está ou está apenas para alguns e não para outros. O nunca-possível, o possível-sempre-inexistente e o possível-por-ora-inexistente, passam a ter, pelo conceito supramencionado, seu lugar no mundo das imaginações. Apenas lá no Imaginário é que eles existem (para algumas pessoas ao menos), pois se algum deles se tornasse real, deixaria de ser transcendental. Percebemos, portanto, que a transcendência, em sentido amplo, abrange não só oindelineável, como o inexistente.
Estranhamente, a transcendência é tão próxima a nós, em certos casos, como irreal. É como se ela adentrasse na realidade através de nós. Podemos falar que certas coisas que imaginamos não são palpáveis, que não as vemos no mundo tocável e sensível, mas, ainda assim, somos capazes de as associarmos com as entidades de modo quase inequívoco, como se elas realmente tivessem uma relação indubitável uma com a outra. Essas coisas que imaginamos nos são incrivelmente presentes e afetam nossos sentidos pelas alusões e analogias que suscitam e pela semelhança com outras entidades. Elas estão presentes em grandes obras literárias, nas sonoras e nas visuais.
Por certo não podemos esquecer do indelineável – do qual não falou-se até o momento -, que compreende a apresentação - a nós - de uma realidade inapresentável, embora existente. Isto é, trata-se de algo que existe, mas que seria praticamente inapresentável em sua totalidade; é descritível apenas de forma imperfeita, alegórica ou enigmática. Talvez seja aquilo de que falam os poetas, os loucos e os místicos. Pois os sentimentos, as sensações, retratados por eles, são reais; estão pulsando em verdade inequívoca em suas carnes, embora, por vezes, só encontrem formas de expressão absurdas e notadamente inverídicas.
O Caminho Desconhecido (parte 48)
Existe um instante em que a idéia vem a nós, espontaneamente. Pronto... aí começará a se desenrolar uma decisiva batalha. Uma série de imagens, expectativas e costumes irão se impor a essa idéia e buscarão subjulgá-la. Nesse momento se deverá não deixar que pensamentos recorrentes e comuns nublem a recém chegada novidade que se instala na consciência. Não precisa que seja uma idéia radicalmente diferente e absurdamente exótica; pode ser sim, mas pode ser também uma idéia inédita apenas, única de certa maneira, ainda que nos pareça simples e sem importância. Ela pode parecer Comum, pela vizinhança que estabeleça com nossas idéias mais recorrentes, ou pelo fato de ter sido um acaso simplório que a trouxe a consciência.
Mas a partir do momento em que ela é registrada, atingindo a tinta da caneta ou os bits de um computador, essa idéia adquire certa imortalidade concernente a todo escrito. Ela perpassará o nosso próprio tempo e o depois de nós, surpreenderá a nós mesmos em momentos futuros - embora pensássemos antes que era uma idéia sem importância -, e ainda poderá ser unir e articular-se com outras idéias futuras, com as quais nem poderíamos sonhar nenhuma conjunção prévia. Idéais antes simples, mas que poderão formar conjuntos muito mais complexos e plenos de sentido - sentido que variará em valor e significado, tanto ao longo do nosso tempo, como ao longo de todos os outros tempos.
Caberá a astúcia do pensador abrir-se ao novo, portanto, iluminar-se com o diferente, desater-se e desatar-se do convencional. As idéias surgem, não há o que olvidar quanto a isso. Elas surgem quando menos as esperamos. Elas se impõe a nós e quanto menos filtros usarmos, quanto menos as ordenarmos conforme nossos organogramas e nossos sistemas, mais elas terão possibilidade de nos surpreender, mais elas navegarão por águas não visitadas e mais chances terão de avistarem terras não conhecidas.
Bem verdade que, às vezes, nos impomos a missão de freá-las, de torná-las apresentáveis, encantadoras. Também as freamos pois não nos contentamos com a liberdade delas ou, mais especificamente, exigimos que elas desgastem um pouco a flexibilidade e a navegabilidade que lhes são inerentes, para que ampliemos conhecimentos e pensamentos sobre águas já conhecidas. Sim, conhecidas, pois parece muito mais impressionante descobrir como incrivelmente novo algo que se tinha como profundamente desvendado do que descobrir uma verdade incrivelmente esplendorosa mas que nada nos diga respeito. Isso é verdade no que se emite, no que se expressa. Mais valor terá o que nos concerne, o que sentimos vivacidade em transmitir.
Por todas essas coisas é que dizer as coisas simples voltou a ter importância; seja porque nunca é demais repetir algo que se deseja enfatizar diante de tantas entidades sempre tão mais proeminentes e incessantes, seja porque as coisas mais simples deixaram de ser ditas, tornam-se às vezes esquecidas e abandonadas. Tudo que diz respeito ao Comum (e o simples diz respeito ao Comum) adquiriu características depreciativas. É preciso exaltar o Comum, tirá-lo desse status Comum, por um instante, pois isso parece a única forma de reavivá-lo.
Importante observar que o Comum não é necessariamente o popular, nem mesmo o difundido-em-massa. Ele pode ser o habitual de cada um, o simples de cada um, o simples da vida. Pode dizer respeito a muita gente, a todo mundo, mas isso não é uma regra indispensável a ele. Mas parece dizer respeito às coisas que têm sido ignoradas - assim pressentimos, como também arriscamos que nem sempre foi assim.
Se quisermos que algo seja notado, nunca é pouco cultuá-lo, colocá-lo em evidência; por mais simples que seja aquilo que imaginamos, é possível registrá-lo para a posteridade.
O Caminho Desconhecido (parte 49)
As Centralidades dominavam o mundo – das entidades. Elas ditavam a ordem das coisas tal como as percebíamos e entendíamos. Seus destinos, seus caminhos, eram influenciados por elas. A história tem se mostrado variável, mas, alguma coisa, em seu curso, em seu processo, teria resistido a alterar-se: as Imaginações. Desde os teatros gregos, desde os coliseus romanos, desde as cortes e seus bobos, teria se perpetuado o domínio das Imaginações (a despeito da ou impulsionado pela tendência humana ao devaneio); razão pela qual esse último percurso temporal milenar foi chamado de Era das Imaginações.
Não que agora elas, as imaginações, tenham se extinguido – por certo que nem desejamos isso. Não que os espetáculos tenham cessado. Mas houve um certo momento em que as pessoas passaram a crer que estavam por demais dominadas por imagens produtoras e inibidoras de ações (pelas imaginações portanto). Por imagem aqui se entenda o sentido mais amplo da palavra, ou seja, imagens visuais, sonoras, palavras, outros mais, a combinação deles. Todos eles teriam se organizado interna e externamente e entre si, teriam evoluído estruturalmente e na capacidade de articularem-se com os demais entes.
Essas imagens sempre estiveram nas obras de arte, na técnica e na criatividade do homem e, no princípio, serviam mais como objeto dele, eram instrumentos dele. Pouco a pouco teriam servido de dominação de uns contra outros. Não que fosse fácil admitir isso, especialmente porque se tratava de um processo muitas vezes inconsciente e, em outras vezes, tratava-se de um processo complexo, que envolvia aspectos negativos e positivos. Ou seja, a comunhão de idéias, o deixar-se influenciar por elas não era necessariamente um mal. Por isso mesmo não é tão interessante talvez, ao menos por ora, julgarmos esses acontecimentos passados como totalmente bons ou totalmente maus, mas investigarmos se eles foram reais, se nos sentíamos mesmo enredados nessa teia tão envolvente de entidades, se elas de fato nos conduziam, nos oprimiam ou nos libertavam aqui ou acolá. Onde elas nos subjugavam? Onde elas nos alegravam? Qual trama havia por detrás desse processo todo? Talvez essas sejam perguntas válidas.
Será mesmo que existiam obras que, de formas de expressão magníficas, passaram a controlar a subjetividade e volição humanas, exercendo sobre nós muito mais poder do que poderíamos imaginar? Até que ponto éramos conscientes disso, até que ponto éramos coniventes com isso, até que ponto víamos positiva ou negativamente isso? E hoje, em pleno limiar do século XXII, como vemos essas coisas, como vemos essas imaginações, esse poder capaz de grandes criações e tantas dominações? Poder que seria sedutor, aparentemente sábio às vezes e inatacável, mas enredado por vezes com tantos outros poderes. Poder que atribuía-se um direito de expressão calçado numa liberdade fundamental. Poder que tinha como causa de ser essa liberdade incondicional, mas que em suas atitudes e em seus efeitos seria parcial e seletivo, tanto no que se emitia e transmitia como em quem isso o fazia (ao menos essas são as acusações do grupos do Imanente, como bem o sabemos) – pouco importa se havia culpa ou se havia implicação nesse processo. Parcialidade que existiria, eis que imerso esse poder estaria em interesses indizíveis - conscientes ou inconscientes pouco importa -, talvez até impensáveis ou impronunciáveis por aqueles que poderiam pronunciá-los (por grande partes das pessoas comuns que viviam àquela época, já que elas mesmas seriam dependentes desse estado de coisas e por ele seriam enredadas) e seletivos dado a limitação – inevitável – do espaço de transmissão e dada a necessária escolha do que seria transmitido (escolha também, inevitavelmente, abalada por interesses).
Como se pode notar, a crítica se atinha sobre essas grandes centralidades – todas elas – que acabavam por ter grande influência sobre as entidades que seriam transmitidas em detrimento de outras. A crítica voltava-se também para a possibilidade de emissão, já que uma minoria dispunha de poderosos aparelhos de emissão de entidades. Não que não fosse possível conquistar espaços de emissão, mas alguns sempre foram secularmente proeminentes, outros possuíam espaços bem restritos, largamente e comumente já acessados pelas pessoas, de modo que era muito difícil reverter a situação instalada. Mas como não era uma tarefa impossível, havia muitas alternativas e searas a se explorar, havia muitos espaços a conquistar, havia muito a ser emitir e havia muito a se criticar. Portanto era o caso de as pessoas despertarem para o fato de que não deveriam manterem-se passivamente como receptoras de entidades.
Os grupos do Imanente abordavam esses pontos, além de vários outros que nos são bem conhecidos. Sabemos que o fortalecimento das centralidades suscitou a contínua crítica às mesmas, promovendo uma considerável descentralização que, impulsionada pelo surgimento de inúmeros novos emissores, tornou-se uma das mais marcantes características pelas quais podemos descrever a grandiosa reversão histórica operada a partir da segunda metade do século XXI.
O Caminho Desconhecido (parte 50)
Já que se pode acrescentar letras e sons não existentes às palavras, o mesmo pode-se fazer com as outras entidades. Isto é, pode-se acrescentar imagens não existentes entre as imagens, acrescentar pedaços nelas, o mesmo se podendo fazer com as músicas. Pode-se mudar a ordem de todas elas dispondo, as primeiras que se apresentam, no fim. Podemos recriar os finais dos conjuntos e das obras que as organizam, podemos alterar a disposição conjunta de imagens, sons, palavras. Podemos acrescentar tonalidades, retirá-las; promover misturas inimagináveis.
E se quisermos criticar uma imagem ou modificá-la, o façamos com um texto ou com uma música, de preferência. Para alterar um texto, introduzamos nele uma música, uma imagem. Nada pior que valer-se dos mesmos entes para criticá-los. Palavras são corporativistas, não estendem-se para os domínios que lhes excedem. Os mesmos vale para as imagens, os sons.
Todos eles são intercambiáveis e produzem conjunções em que o todo parece algo diferente da mera soma de suas partes. É de se notar que as palavras estão presentes em meio à maioria das entidades mais proeminentes, ou seja, àquelas a que estamos mais constantemente expostos. É possível que uma mudança no poder e no sentido das palavras implicasse, muito provavelmente, em desordens nas demais entidades e, mais ainda, no conjunto delas (nas músicas, nos filmes).
Mas é possível imaginar, alternativamente, que o próprio valor das palavras advém justamente do emaranhado de entidades em que se encontram – emaranhado à que estão sujeitas. Interferir na configuração de toda essa teia, produtora de sensações e imaginações, bem provavelmente alterará o lugar das palavras nas hierarquias e organogramas ditos universais.
O Caminho Desconhecido (parte 51)
(provérbio mexicano da década de 1970 – séc. XX – Dias Antigos)
“Não tem trabalho ruim; o ruim é ter que trabalhar”.
* * *
A seguir, alguns grupos anteriores e posteriores à Época do Imanente. Alguns mantiveram-se até o início do século XXII. Uns se extinguiram, outros diminuíram em importância; outros se fortaleceram.
- Associação dos Consumidores Esclarecidos (ACE);
- Sociedade dos Amigos da Liberdade, da Verdade e da Igualdade (SALVI);
- Organização das Forças Irmãs à Comunhão Econômica (chamados pejorativamente de “neomarxistas”, como os da ACE e outros mais - alguns assumiram o apelido);
- Centro de Estudos dos Textos Reflexivos e Orientadores (CETRO);
- Missionários da Economia do Futuro (chamados apenas de “missionários”);
- Irmandade pelo Consumo Organizado e Doutrinário;
- Sociedade Caminhos do Ignorado;
- Espaço Criativo Idéias do Amanhã (chamado só de “Idéias do Amanhã”);
- Associação Transcendente Realidade Alternativa (apelidados de “Místicos”; sem referência a misticismo, entretanto);
- Sociedade Imanente Renascer (chamado só de “Renascer” ou “o pessoal do Renascer”);
- Sociedade das Entidades Eternas (SEE – vulgo “Sé”);
- Grupo Transcendente Novo Amanhã (chamado mais por “Novo Amanhã” ou por “Grupo Novo Amanhã”).
Evitamos colocar os vários grupos que possuem os adjetivos “imanente” ou “transcendente”, pois estes eram muitos e seria enfadonho citá-los.
O Caminho Desconhecido (parte 52)
Assim é o que é
O que ninguém tem,
O que ninguém vê,
O que ninguém pode.
Não é fácil de falar,
Não é mole não,
Isso que também nos apraz,
Isso de que desconfiamos.
* * *
Ó Futuro,
Eu fico aqui pensando,
Em você, já que é nosso único conforto
De ti só insinuações, previsões, definições... nenhuma certeza
Ó Futuro, que já vens até nós,
Nos nossos sonhos, nas nossas esperanças,
Você é o nosso amanhã
Tu que está depois de nós, que resistirá e permanecerá,
Tu que não imagina o seu não-ser,
Ouve agora a minha voz, ouve a voz do passado
Nós não pudemos lhe acompanhar,
Antes de ti nós ficamos no caminho,
Nessa margem intransponível
E daqui, dessa praia sem embarcações a daqui nos tirar,
Olhávamos o infinito mar
Sim, futuro, daqui ousamos te observar,
Buscando no infinito oceano,
Algum vestígio de tua passagem
Daqui nós te esperamos,
Nós te imaginamos,
E desejamos que viesse nos salvar
Guarda para você o teu passado,
Nós que ficamos para trás
Guarda para você essa terra abandonada
Mas não fica, vai,
Vai e permaneça em tua águas,
Sempre inesperadas.
O Caminho Desconhecido (parte 53)
Haveria uma parte potencial em todo saber. Este se constituiria não só com base em um passado que nos encaminhou até as possibilidades limitadas que nos enredam; não só com base num presente intacto, intransponível, inerte. O conhecimento antecederia – ou poderia anteceder – um outro nível de realidade. Na verdade, a própria realidade seria acompanhada de um espaço potencial, um espaço não pré-existente ou incompreendido; a forma como se conduz o saber poderia nos levar a um ou a outro nível de realidade. Este seria o campo político de todo saber.
Isso é imprescindível de se apontar. Pois depois que a escolha é feita pode-se não poder voltar atrás. "A vaca pode já ter ido para o brejo". E tão importante quanto as verdades é o cuidado que se deve ter com as mesmas, é o destino que se dará a elas, é o zelo e a sabedoria para guardá-las e transmiti-las.
O Caminho Desconhecido (parte 54)
Inverno semântico é o que vivemos. Frio intenso para as palavras, sempre tão exprimidas pelos sentidos e as coisas, que se impõem às primeiras. Mas de onde vêm essa sensação térmica? Do que advém essa noite avançada que não permite o porvir do dia? Por que tememos esse porvir, porque não abraçamos a mudança? Por certo que não resistiríamos ao brilho do raiar desse Grande Dia, sonhado e temido; nós sucumbiríamos ao seu calor. Por isso mantermo-nos nessa noite sem amanhecer, por isso essa madrugada sem fim, sem esperanças maiores, sem ameaças a nossas verdades cotidianas.
Inverno das trilhas e sendas programadas pelo destino. Clima que nos oprime por nos deixar sem fugas, sem saídas evidentes e efetivas. Vemos a realidade e ela olha para nós, nos envolve, mostra seus limites atuais, nos entristece. Realidade que nos é mostrada, realidade das amostras, das cenas sobrepostas, de nossas próprias cenas, de nossa própria encenação. Realidade que seria impossível apreender em sua verdade absoluta; mas, em todo caso, nem ao menos nos interessamos em apreendê-la, minimamente que seja – nem temos tempo para isso.
Onde está o fim do túnel? Onde está a curva que nos levará a uma estrada mais esplêndida, nos arrancará desse limbo e nos restabelecerá os dias nunca vividos, mas sempre tão sonhados? Onde estará nosso caminho desconhecido?
O Caminho Desconhecido (parte 55)
Os transcendentes não acreditavam em entidades puras, tais como o amor e obem, já que tais ideais não poderiam ser evidenciados em plenitude; não seria possível que alguém chegasse e atestasse com firme certeza: “vejam todos, isso é o bem". Por isso, como forma de crítica àquilo que fosse julgado como inequívoco e inegável, eles inventaram um pequeno, mas amplo artifício: acrescentar o prefixo “contra” às palavras. Com isso, criaram um dispositivo de reflexão a todas as entidades, já que todas estas são - minimamente ao menos - traduzíveis em linguagens.
A noção de contra-controle, como bem sabemos, foi muito utilizada no cenário político (não pelos transcendentes, é claro), servindo como forma de crítica aos poderes centralizados e suas atividades de controle; controle muitas vezes executado em nome do bem-comum e em nome do bem-estar da sociedade. A noção de contra-controle é uma entre tantas idéias cuja origem transcendente foi praticamente esquecida, mas que determinou sobremaneira os destinos do pensamento cultural atual (2193 DC - Dias Imanentes). É interessante reparar que usualmente falamos dos transcendentes e dos imanentes no passado, como se ainda não existissem entre nós. Isso parece apontar o quanto suas contribuições foram mais significativas e necessárias naqueles tempos.
Do vácuo intransponível entre as entidades e as coisas é que residiria a impossibilidade de sobrepor umas às outras. Essa é a verdade que os transcendentes sustentavam; e tiravam dessa crença toda a força crítica que opunham às verdades inquestionáveis; daí é que emanava toda contestação que faziam a qualquer projeto de definição e de arranjo da realidade que se proclamasse o melhor ou o mais correto. Onde havia certeza, os transcendentes enxergavam ilusão; onde havia convencimento, eles viam enganação; onde havia juízo moral, eles denunciavam interesses pessoais. Assim era o método intelectual dos transcendentes. Não que as certezas, o convencimento e a moral fossem completamente falsos em si; o problema era quando eram invocados como forma de se erguer axiomas ou como forma de se delimitar lugares privilegiados e poderosos ou como forma de se estabelecer hierarquias.
Entre as entidades e as coisas haveria esse espaço, infinitamente preenchível. Portanto não se tratava de reafirmar um impossível em todas as representações, como já teriam feito no passado. É verdade que se tratava de afirmar um impreenchível; mas isso implicava numa tarefa positiva: a de um preenchimento infinito das coisas por meio das qualificações. Esse processo, de criação e de construção das representações da realidade, apontava para a capacidade mutante das entidades perante as coisas. “Se há um impossível, isso não nos interessa”, diziam os transcendentes. Importava apenas era a capacidade ilimitada de estabelecer mudanças, em fundar verdades novas que fossem tão vivas e tão esplendorosas como as que anteriormente reinavam no mundo dos entes.
O Caminho Desconhecido (parte 56)
Um enorme cargueiro espacial foi enviado em missão ao planeta vermelho. Era o primeiro desse tipo, e tinha como missão transportar para a Terra uma imensa quantidade de adamântio – nome que foi dado ao novo e valiosíssimo mineral encontrado nos desertos de Marte. O cargueiro trazia esperança ao velho Novo Mundo, enquanto perfazia seu trajeto, trazendo de volta não só a carga, mas a tripulação, organizada por Quebec e pela América Republicana. Esses dois governos eram os mais importantes da América do Norte e estavam desgastados com as recentes e respectivas divisões territoriais, consequência de plebiscitos nacionais promovidos pelas antigas nações-mãe - o que acabou por abalar a solidez político-econômica da região. Mas as dificuldades ainda não iriam acabar.
O adamântio não podia ser extraído em grandes pedaços, seja porque a gravidade de Marte dificultava essa tarefa, seja porque a atmosfera do planeta impunha-se como obstáculo, seja porque não era viável investir numa exploração de grandes partículas. Por causa desses empecilhos, qualquer alteração formal do recurso, que tivesse objetivo estritamente manufatureiro (e não de transporte), seria realizada apenas na Terra. Era a primeira missão interplanetária com fim primordialmente comercial. Era a primeira de porte tão imenso, não havia tido navegação espacial desse monte, e não se podia arcar com custos para testes ao projeto (isto é, não se podia testar a nave no espaço). Julgava-se, entretanto, que Ícaro andaria em águas já conhecidas e que a arquitetura da espaçonave era praticamente divina, sem falhas. Eles não poderiam imaginar que o Titanic iria afundar uma segunda vez.
Um problema no reator esquerdo da cápsula de desentupimento que controla a válvula de resfriamento do macromotor atômico pifou, apesar de toda engenharia que prometia que isso nunca iria acontecer. Com o incidente, gerou-se uma explosão em cadeia que não só partiu a nave em vários pedaços - ao fim desse processo catastrófico -, como lançou as milhares de partículas do mineral adamântio em uma vasta região terrestre de nosso planeta; as partículas caíram quase que totalmente sobre a África. Elas ficaram protegidas por invólucros especialmente criados para uma possível catástrofe, mas imaginava-se que tal incidente improvável, caso ocorresse, não impediria que a carga chegasse ao continente americano.
Providência divina, disseram alguns. Pois bem que parecia mesmo, não só pelo local em que caiu o mineral, mas porque, mais alguns minutos, e a tripulação da Ícaro não teria encontrado nave de fuga para se salvar. Ainda bem, ninguém morreu. E o adamântio não se perdeu, caiu quase inteirinho no coração do planeta, desde o Saara até a África do Sul. E iniciou-se uma séria discussão nos fóruns internacionais sobre quem teria propriedade sobre o mineral vindo do céu: a velha e pobre África e seus nada bobos habitantes, que recolheram e esconderam o que puderam; ou os sempre poderosos do norte, que defendiam perante o mundo um direito que permitiria que restabelecessem sua antiga hegemonia.
O Caminho Desconhecido (parte 57)
"Nada é permanente, exceto a mudança".
(Heráclito)
O perigo maior da utopia não é seu caráter fantasioso, não é sua capacidade de transportar as pessoas para um lugar que não o delas; mas é sua potencialidade a ser tornar real. Este é o temor que a utopia nos traz e mais ainda àqueles que nem podem ouvir falar dela, àqueles que, mais do que nós, estão muito satisfeitos com o estado de coisas em que se encontram ou que acreditam que não existe estado de coisas melhor do que o que se encontram. Mas nós que vivemos na gangorra da vida, sempre insatisfeitos com a vida, mas sempre tendo pelo que a ela agradecer, nós que não temos seguranças maiores, nem desesperanças terminais, nós que vivemos nesse eterno limiar... Nós temos motivos para cultuar a utopia – e também para temê-la. Nossa utopia não é a dos outros e, por isso, não é qualquer utopia que nos apraz. Mas certamente a temos, a desejamos, pois é ela que nos restabelece de nossas amarguras, ela que nos manterá a promessa de encontrar a chave-mestra que nos permitirá abrir todas as portas que foram seladas pelo destino.
* * *
"O ser é e não pode não ser e o não-ser não é e não pode ser de modo algum". (Parmênides)
As coisas retornarão a si. Chegará o dia, estejamos certos, em que a dúvida não mais nos abalará com suas incertezas. Chegará o dia em que nossas palavras não serão equívocas, pois não precisaremos mais distorcê-las. Chegará o dia em que os ideais serão caminhos certos e não essas trilhas bifurcadas e entrelaçadas graças aos interesses mesquinhos e imediatos. Um Sol irá nascer a leste desse vale de sombras em que nos encontramos. Menos do que mudança nos sentidos é nos lugares que as coisas se restabelecerão. A mudança, sim, ela virá. Restabelecendo-se os lugares das coisas é que elas voltarão a serem evidentes, certas, plenas e vívidas – as coisas boas e as ruins. Elas não serão mais titubeadas e murmuradas.
Os que defendem alguma moral não serão enganados, mas nem os que a condenam serão prejudicados. Pois todos eles saberão muito bem do que falam, ou, pelo menos, se sentirão muito mais seguros em seu dizer – muito mais do que nos dias de hoje.
O Caminho Desconhecido (parte 58)
Há muitos séculos atrás apareceu um profeta. Ele ficou praticamente esquecido pela história, mas alguns achados recentes indicaram que ele de fato existiu. Próximo a terras nunca visitadas, atravessou regiões mais desconhecidas ainda e espalhou sua palavra sobre aquela gente. Ele dizia vir para dividir o que tivesse que ser divido e unir o que tivesse que ser unido. Ele pregou, pregou e difundiu sua palavra. Era uma palavra diferente, por certo, ninguém nunca havia visto algo como aquilo, ouvido expressões como aquelas.
Ainda assim aqueles ditos entravam como flecha ardente em seus corações e lhes diziam coisas que nunca tinham imaginado mas que, entretanto, lhes parecia ser a mais pura verdade. Em alguns momentos os enigmas tornavam-se difíceis, e mesmo incompreensíveis, mas isso não diminuía em nada a força daquela sabedoria que, indubitavelmente, só poderia advir de algum plano mais superior do que aquele em que se encontravam.
E assim era a figura daquele grande homem: alguém simples do povo, acostumado aos costumes, dedicado por muito tempo a seus afazeres, mas que percebia que havia algo errado, algo não dito, algo que precisava ser denunciado. Assim era aquele homem: a princípio um homem como os outros, mas que sentiu algo realmente divino, algo extraordinário: sentiu que havia um silêncio que não poderia ser mantido. E por isso ele falou.
Ele anunciou que o que estava para ser dito, agora resplandeceria nos mais altos montes; o que estava escondido agora se encontraria a descoberto a todos os olhos; a verdade que antes se encontrava calada e mistificada, agora seria acolhida entre aqueles que nunca deveriam tê-la rejeitado. E dizia que "mais dolorido que enxergar o brilho ofuscante da verdade é viver sempre com uma venda que não permite perceber o que agride a seus olhos".
O Caminho Desconhecido (parte 59)
(O texto a seguir é anterior a 73, apresenta por isso alguns elementos um pouco confusos, mas é possível perceber ideias que se consolidarão mais evidentemente entre alguns grupos, como o conceito de “formas” que mais tarde será visto quase que uniformemente como “entidades”)
Como que corrompidas as palavras muitas vezes estão. Não nos dizem muita coisa por vezes. Valem por sua finura, espessura e incompreensão. Quando mais difíceis, mais belas podem ser nesses casos. E, quanto mais inúmeras forem elas, mais bem alinhadas à agitação das formas elas estarão - agitação que se tornou uma característica marcante de nossos tempos. Se essa agitação se deve mais às coisas do que às formas isso não importa tanto. Evidente é que esse frenesi nos comanda. Dizer, dizer e dizer: aqui estamos nós, assim também procedendo.
Nesses tempos de domínio das imagens, tantas elas são que, por vezes, esvaziam-se de sentido. Para ser honesto, as imagens nunca foram tanto imagens – e quase que apenas isso, muitas vezes. Diferente destino não receberam as palavras: tornaram-se, muitas vezes, quase que só palavras. Talvez os sentidos não tenham acompanhado a multiplicação das palavras, acabando que apenas alguns sentidos ficam mais em evidência. Não que hajam palavras e imagens que não valham muito mais do que suas formas, do que suas superfícies – mas é que elas estão imersas, muitas vezes, num vasto batalhão de figurantes. Não que esse processo não seja reversível ou tenha que ser reversível – mas ele está aí.
Também não cabe tanto questionar se os figurantes deveriam protagonizar ou se os protagonistas deveriam sair de cena. Claro que esses seriam questionamentos possíveis, mas aqui estamos a apontar essa disposição... essa disposição que, a uns, fornece maior sentido e, a inúmeros outros, menos – e ainda há aqueles que nem ao menos aparecem como figurantes de fundo.
Então, do que se fala aqui? Fala-se da multiplicação das formas que não são acompanhadas pari-passo pelos sentidos (de preferência que não sejam, às vezes é o que parece que se deseja¹). Essa variedade formal, e não semântica, pode servir, paradoxalmente, para se fornecer um sentido privilegiado a algumas poucas formas. É possível – hipotetizamos – que esse sentido mais pleno possa nem ser constatado facilmente nas formas (supomos que nem precisem estar nas formas, mas entre elas); podemos supor que certa astúcia poderia instalar o sentido em meio às formas, inclusive entre aquelas de pouco sentido e que são várias².
Alternativamente podemos pensar essa astúcia como algo que fala nas formas (de dentro delas). As formas são subdivisíveis e pode-se distinguir nelas valores, intrínsecos³ e extrínsecos. O valor extrínseco adviria da relação que essas formas estabelecem umas com as outras – supondo é claro que a tal astúcia mencionada estaria por trás dessa organização das formas, da própria possibilidade de existência das mesmas e também da forma como elas atuam.
____________
1 – Sobre o papel dos interceptadores na disposição das entidades ver: CHATEAUBRIAND, José da Silva Pereira. A função obstaculizante dos interceptadores na manifestação dos sentidos. Virtoeditora Óptica. São Franscisco, 2188.
2 – Nitidamente aqui podemos identificar o conceito de “interceptador” que será reificado bem posteriormente entre os grupos. Os termos entre e meio bem que se aproximam da noção de limiar, também tão cara aos movimentos do Imanente, mais tarde.
3 – Aqui parece se estar falando do que mais tarde os grupos de orientação imanente chamarão “essências”.
O Caminho Desconhecido (parte 60)
(Postulado da Biologia em 2083 – Dias Imanentes)
“O fundamental não são as duas espirais que estão presentes no DNA, mas o que as une”.
* * *
Nem tudo é tão óbvio que não possa deixar de sê-lo,
Nem tudo é tão difícil que não se possa remetê-lo
Do alto céu desvanece nossa visão,
Das profundezas, distantemente, não desaquece a escuridão
No véu em que se projeta uma o contrário da outra,
Reside a magia de um espelho providencial,
Sem o qual não se constituiria qualquer apoteose
A folha de um livro... duas páginas ela guarda,
A porta de uma casa... duas entradas ela vigia,
Entre! entre!
O espelho não possui nenhum reflexo, só o reverso
Embora hotel dos viajantes,
E vogal entre as consoantes,
E mutante entre os constantes,
Deram-lhe um bilhete eterno para tuas passagens
Vagueando entre a dúvida e a culpa,
Peregrino dos limbos terrestres
Salvar-te-á? Salvar-te-á?
Disso não se esquive ou cuidado,
À margem do Nilo ou do Aqueronte,
Mas que a acima de tudo,
Não se esqueçam de ti.
O Caminho Desconhecido (parte 61)
Sabe-se que quem faz uma caridade não deve almejar recompensa e deve se atestar que ninguém viu a doação. Mas e se nem a própria pessoa lembrasse da caridade que fez, teria seu gesto algum propósito?
Era um tipo de ideia exótica como essa que passava à cabeça de um certo peregrino que encontrava-se no interior da velha cabana onde estava localizado o Livro da Vida. Ele já havia se decidido a esquecer os sagrados ensinamentos que vislumbrava. Ele já havia resolvido voltar a sua humilde vida, aos seus parentes e amigos e esquecer todos os seus sonhos de poder e saber. Já haviam se passado algumas horas e ele só poderia permanecer na lendária colina por vinte e quatro delas – assim lhe disseram os guardiões do Livro.
De que adiantava continuar lendo todos aqueles escritos fabulosos – se perguntava – se já havia se decidido a voltar para seus familiares, para seu cotidiano, para suas coisas? Não haviam lhe dito nada sobre esquecer o passado e ele não tinha enfrentado todos aqueles caminhos difíceis à toa. No fundo temia permanecer ali mais um minuto que fosse; temia continuar lendo aqueles textos tão incríveis e, no fim, acabar mudando de ideia e escolher uma vida inteiramente diferente da que vinha tendo até então. Tinha medo em cometer um erro irrevogável – isso para qualquer escolha que fizesse.
Quanto mais tempo permanecia ali, mais se perguntava se não devia acolher a graça – e a maldição – que lhe era oferecida; mais a sua certeza de retornar ao lar se esvanecia. Já passava a se perguntar se não era ele, enfim, a pessoa certa e digna a estar ali e que teria sido providencialmente escolhida para usar os conhecimentos do Livro. Os guardiães disseram-lhe que, passadas as vinte e quatro horas, ele esqueceria a sua vida normal, como se nunca estivesse existido antes – diferente aconteceria se saísse sem decisão ou optando por sua vida anterior.
Muitas vezes também pensava: “vou sair correndo agora mesmo, vou embora daqui, não posso esquecer quem eu sou”. Mas ele hesitava e não saía. Era uma tortura essa pressão que sentia em ter de escolher, pois mesmo sua omissão era uma escolha - ele sabia - e lhe traria consequências. Ainda não estava certo do que queria.
O Caminho Desconhecido (parte 62)
Comete-se equívocos ao referir-se aos grupos formados na Época do Imanente. Para começar é importante apontar que os grupos vinham formando-se desde muito tempo antes - se não é um sacrilégio assim dizer. Isso porque sempre houveram “os seguidores de Heráclito e os de Parmênides”, como ironicamente eram rotulados. Eles sempre atravessaram as épocas e representam todos os movimentos que sempre teriam se dividido entre uma postura mais cética ou outra mais "moralista". Mas o que se viu constituir no meio do século XXI foi algo muito mais profundo. Houve uma institucionalização de grupos que se apoiavam nitidamente em uma dessas posturas, mesmo que eles mesmos não atribuíssem – e ainda não atribuem – sua forma de pensar àqueles citados pensadores.
A confusão que se faz ao se falar dos grupos é dizer que são os “grupos do Imanente”. Desde àquela “época das grandes mudanças”, quando se usava tal expressão (“grupos do Imanente”), referia-se tanto aos grupos de orientação imanente quanto aos de orientação transcendente. Se se queria referir aos primeiros falava-se que eram, como dito, “de orientação imanente” e não que eram “imanentes”, já que os transcendentes também eram “do Imanente”.
É confuso, nós também sabemos. E esses equívocos parecem ter uma explicação histórica. Os grupos do Imanente contam que o surgimento dos movimentos foi a 150 anos atrás, isto é, em 2043. Nada de evidentemente mais radical aconteceu de fato naquele citado ano, mas esse foi o ano em que muitos dos grupos se institucionalizaram. Esses grupos já vinham se formando nas últimas décadas, mas uma grande quantidade deles se estruturou, se ampliou e se formalizou no ano referido. Mas apenas em 2050 houve a divisão formal dos grupos em imanentes e transcendentes – de modo que, desde o início, essas duas diferentes linhas de pensamento tinham algo que as unia, algo que as fazia sentirem-se, de certo modo, numa mesma trilha, numa mesma época.
Por causa dessas dificuldades históricas, linguísticas e de interpretação, diferentes versões sobre os termos e os acontecimentos são dadas. Mas uma grande quantidade de pessoas entendem que a Época do Imanente iniciou em 2043. Em 2064 houve a Primeira Derrocada – quase nenhuma discordância quanto a isso. Em 2073 veio a Grande Derrocada, o Grande Ano, que, embora tenha trazido grandes mudanças, foi mais esperado do que inédito, já que veio coroar todo um movimento iniciado em 2043 – ou muito antes. Daí nascem algumas discordâncias, mas a maioria parece crer que os Anos Jovens iniciaram em 73 – e todos os anos após este recebem a alcunha de “Dias Imanentes”, em contraposição aos anos anteriores a 73, os “Dias Antigos”. Em 2088 as últimas mudanças importantes foram concretizadas e institucionalizadas com a Última Derrocada.
Nunca é demais dizer – o que todos já sabemos – que, embora se estabeleça a cronologia dos grupos apelando para as datas políticas, a maior contribuição dos grupos, certamente, encontra-se fora do cenário governamental. Ou melhor: as mudanças políticas só puderam vir com essa transformação radical na maneira de pensar de toda uma sociedade. Usa-se aqui as datas políticas, pois assim sempre tem sido feito; é um estigma nosso ligar a nossa existência a governo – mas os próprios grupos nos ajudaram muito, bem o sabemos, a livrar-nos desse tipo de amarra ou, ao menos, a minorá-las.
Fato é que não se pode de forma alguma – assim entendemos – atribuir o declínio das grandes centralidades como consequência de atuação governamental. Atribuí-las aos grupos do Imanente também não faria inteira justiça aos esforços de inúmeros outros grupos e pessoas que produziram a reviravolta cultural, jamais antes vista, na segunda metade do século XXI e início do século XXII – depois disso a civilização apenas seguiu essa senda já antes iniciada. Claro que houve o progressivo distanciamento entre imanentes e transcendentes que nós conhecemos - distanciamento intransponível entre os filhos de Heráclito e os de Parmênides.
Por certo que seria injusto supor que a revolução cultural, que originou os novos tempos em que vivemos, adviria sem a atuação prévia e imprescindível dos grupos do Imanente ou, ao menos, supor que a contribuição deles não tenha sido irretribuível e inigualável.
O Caminho Desconhecido (parte 63)
O ponto de encontro seria o que liga vários elementos do Interstício, por ação do Limiar. Mas nunca podemos nos esquecer que é só por causa desse magnetismo exercido pelo Limiar – e por sua capacidade de unir diferentes posições – que os diversos passam a congregar por infindáveis motivos possíveis. Sendo assim, não precisamos pensar o Limiar como sendo algo único.
Poderíamos, já sabemos, pensar o Limiar como mutante o suficiente e magnético o bastante para manter o Interstício sobre seu comando. Mas é possível, alternativamente, imaginar que um limiar é alterado por um outro, que poderá merecer ser escrito com letra inicial maiúscula, desde que passe a ser a região de maior influência do Interstício. É sempre de se notar que o interstício não parece ser região milimetricamente definida. Ele se caracteriza de acordo com as várias posições que ele engloba em parte, de acordo com as fronteiras, os limiares, entre essas posições. Um Limiar, que é central e primordial, pode existir, formado a partir desses limiares e dessa configuração do Interstício.
Se o interstício é esse ambiente dinâmico, em processo, parece sensato pensar que haveriam limiares vários que se apoiam, alguns podem divergir e poderia haver um maior entre eles que alcançasse maior campo de domínio. Ora, é fundamental pensar nessas divagações aqui expostas. Pois, bem lembramos, o limiar pode congregar com ambas as extremidades, com nenhuma delas ou com uma apenas. Se considerarmos que existem várias extremidades, várias posições, notaremos o quão diversificada pode ser a atividade do Limiar, que de nenhuma forma deve ser vista como permanente, monótona, mecânica e inevitável.
* * *
A vogal E parece possuir uma variação sonora diferente da vogal A. Vejam a palavra MESA: a voga E se pronuncia da mesma forma que a pronunciaríamos caso fosse grafada com acento circunflexo, na forma MÊSA. É que o E parece que mais comumente tem som fechado, mantendo tal som quando é grafado com o acento circunflexo. Não é sempre: vejam que usei a palavra PARECE e o segundo E é pronunciado agudamente. Mas isso é uma exceção e parece ser algo um pouco raro de ser constatar. Inversamente, e não menos raro, também foge à regra a vogal A na palavra CABANA, em que o segundo A tem som fechado, o que não parece padrão de A, que normalmente é agudo, quando sem acento (note-se que nas duas exceções, em “cabana” e em “parece”, as vogais divergentes do padrão pertencem a sílabas tônicas).
Diferente do E ocorre com a vogal A. Digo MAÇA, e vocês podem pensar naquela arma de guerra cujas vogais A são pronunciadas com som aberto. Aqui, na vogal A, o som agudo parece mais constante. Se coloco um acento circunflexo no último A, isso parece fazer muito mais diferença do que para a vogal E. Pois em A, o som de comumente aberto, torna-se fechado. Não à toa dizem que o I e o U são vogais fortes. Se bem que estão mais para vogais neutras, porque só possuem uma sonoridade e não se alternam nas formas aguda e fechada.
No exemplo usei acento circunflexo. Mas e se fosse agudo? A relação seria inversa. O A, mais usado com som aberto, não tem mudanças sonoras com a inclusão do acento agudo – na maioria dos casos, registre-se. O E, inversamente, sairia mais vezes da sonoridade fechada, indo para a aguda.
Se quiséssemos fazer uma brincadeira e escrevêssemos a pronúncia da palavra inglesa “ten” (número dez em inglês) em português, não bastaria, quase, escrever TEM? E assim o é porque a palavra americana usa o E com som aberto, como a brasileira. A mínima diferença na sonoridade se dá porque não falamos, em verdade, TEM, mas TEIM (vejam como pronunciamos o I e nem nos apercebemos disso). Isso não parece desmerecer o fato de o E, geralmente, ter som fechado, já que não anunciamos isso como regra invariável, e já que o "E" pertence a sílaba tônica do monossílabo TEM (e temos verificado que uma vogal de sílaba tônica, sem acento, tem sonoridade inversa da que teria em sílaba átona, também sem acento).
Uma pequena colocação sobre til e acento circunflexo: concordemos que não há diferença entre eles. Apenas parece que o efeito que produzem é diferente do efeito da consoante M ou N. Assim em TUPÃ, esse som – acho que é nasal que se diz – produzido pelo til não se arrasta como em PÂNTANO (ou como no neologismo "PÃNTANO"). No segundo caso o N parece prolongar a sonoridade produzida, como que preparando o encontro com a próxima sílaba. Por isso, se a palavra MUITO fosse escrita conforme sua sonoridade, deveria ser escrita na forma MUINTO, isto é, acrescentando-se apenas N, e não til ou circunflexo, à sua vogal I. Por convenção chamaremos nasalidade interrompida ou curta à sonoridade produzida por til e circunflexo. E chamaremos nasalidade plena ou prolongada a que é produzida por M e N.
O Caminho Desconhecido (parte 64)
Às vezes desejamos estar em outro lugar,
Mas por fim refletimos:
"Não saio de cá, pior não quero ficar".
Isso também não dá,
Nem aqui estamos certos em parar
Lançam-se as tempestades,
Exigem mais do que queremos dar,
Sempre, e não tem jeito,
Divididos, o objeto e o sujeito,
O ser e o estar
Quero isso, posso aquilo
Devo assim, mas espero assado,
Nunca conciliado,
Sempre incomodado,
O hoje, o amanhã, o sempre, o nunca,
E o passado
* * *
Lançando-nos de um lado para o outro: assim sentimos que agem os interceptadores em dados momentos. Vemos um conjunto de entidades a nos incitar à sexualidade – para dar um exemplo bem notório. Em outra ponta, da mesma arquitetura centralizadora, do mesmo aparelho emissor e difusor de entidades, encontramos outro conjunto de entes condenando severamente posturas concernentes à sexualidade – continuando o exemplo.
Parando para pensar mais detidamente sobre isso: vocês não vêem algum paradoxo nisso? Não se está a afirmar qual dessas posturas, qual desses conjuntos de entes é o correto, o certo e o moral. Não se está defendendo algum moralismo, ao menos não o que defenderia uma sexualidade pura e politicamente correta. Também não se está fazendo uma defesa social de criminosos que cometem delitos relativos à sexualidade. O que se está fazendo aqui é colocando esses conjuntos de entidades, a nosso ver opostos, a nosso ver inconciliáveis, um ao lado do outro – diferentemente do que fazem os emissores que os difundem.
Se esses conjuntos de entes - tão paradoxais, tão anacrônicos e tão incômodos uns aos outros, como os do exemplo - fossem colocados numa mesma cena, numa mesma moldura, num mesmo agrupamento, um ao lado do outro, não nos pareceriam deveras incompatíveis e inconciliáveis? Que processo fantástico e “fabuloso” é esse que coloca figuras tão divergentes numa mesma grade, num mesmo menu, numa mesma estrutura midiática ou universitária, numa mesma gama de cursos e nas mesmas organizações de trabalho?
Por certo que há um poder que define isso e que não admite alteração, por qualquer pessoa, seja dessa grade, seja de seu questionamento. Por vezes esse questionamento não está na própria estrutura organizacional e está em algum outro lugar, mas sem a mesma proeminência que essas estruturas e sem a mesma força de influência sobre as pessoas. Não que isso seja sempre, não que seja em todas as centralidades, não que não seja um processo reversível. De fato essas coisas são imprecisas e incertas, dada a dificuldade e mesmo a impossibilidade lúcida de generalizarmos as centralidades e as igualarmos - mas suspeitamos essas ideias que nos surgem por certos exemplos como o citado - as sentimos e pressentimos. Convictos, entretanto, parecemos estar dessa necessidade que nos faz pensar e falar essas coisas. Em todo caso sonhamos que, desse nosso ato de enunciar, alguma mudança nasça.
Por que esses conjuntos de entidades, estranhos uns aos outros, parecem aceitáveis para nós? Não há um silêncio – que se tentou quebrar aqui – sobre esse processo, não há um intervalo oculto a manter e perpetuar todas essas entidades - desses opostos grupos - como apreciáveis?
* * *
Que não consigamos desabar os céus,
Que o abismo não reivindiquemos,
Que nos deixem transitar,
E a tudo revirar,
Sem nos desesperarmos,
Sem merecermos culpa.
Caminho Desconhecido (parte final)
As estrelas brilham solitárias no universo. Isso não diminui em nada o esplendor que possuem.
* * *
O texto a seguir são as minhas considerações finais a “O Caminho Desconhecido”. Talvez vocês esperem um resumo do que venho escrevendo, apontamentos sobre muitos dos textos ou conjuntos produzidos. Isso ficará para outro momento – quem sabe. O que está a seguir é inteiramente conectado aos textos até aqui produzidos. Não posso dizer que é um resumo de minhas intenções, porque elas mesmas foram se alterando impressionantemente ao longo de minha produção. É, penso, minha última impressão, nesse momento de conclusão dessa grande etapa da obra – pois nada impede que ela seja retomada mais tarde. Mas é mais do que uma impressão: é uma mensagem, quase que outro texto.
* * *
Vocês hão de concordar que, sobre certo ponto de vista, para se falar disso ou daquilo, não é necessário mostrar que, indubitavelmente, cada coisa é o que é. Se dizemos isso é isso e aquilo é aquilo, pois bem, zelamos pela sinceridade e honestidade de nossas intenções e mostramos, assim, que não queremos titubear e queremos ser claros o máximo possível. Ora, e quando estamos incertos ou em dúvida sobre o que afirmamos? Deixaremos de falar, de dizer, de enunciar? Não, não iremos. Anunciaremos da mesma forma, como se certos estivéssemos daquilo que dizemos.
Digo, por exemplo: “para se criticar um texto, usemos uma música ou uma pintura, pois palavras são corporativas e não se denunciam”. Digo a seguir que “o mesmo valem para as imagens, para os sons”. Tenho tanta certeza dessas coisas que acabo de afirmar, estou sendo totalmente sincero sobre minhas convicções? Não, não estou. Mas por que então mostrar-me tão convicto, ou melhor, donde eu tiro a autoridade para ser assim tão aparentemente leviano a afirmar como inequívoco o que me parece incerto ou dúbio? Pois eu lhes digo que a autoridade advém do silêncio. Sim, do silêncio. Pois antes não havia motivos para se tratar dessas coisas – relativas ao exemplo dado –, para falar do caráter inquestionável das palavras que não se criticam, das imagens e dos sons que não as criticam, de todos eles que não se criticam. Antes essas e outras coisas não se encontravam em debate. Mas pelo simples fato de ter afirmado essa justa mentira, essa indispensável e inigualável verdade-provisória que afirmei como inabalável... por esse fato é que será possível que outros venham e a coloquem em cheque, mostrem sua inveracidade.
Porém uma coisa os que nos contestarem não vão poder fazer: deletar a nossa proposição, essa que coloca em evidência a possibilidade de crítica aos sons, às palavras e às imagens – implícita no exemplo que dei. Repito: digo esse duvidoso axioma “as entidades são corporativistas”; e a consequência disso será que essa proposição poderá ser ignorada, ela poderá será combatida, ela poderá será alterada – mas não deletada. Uma vez proferida, ela não admite um não-ser. Admite um vir-a-ser, uma transformação. Admitirá um reverso, um oposto, um contrário. Admitirá até um esquecimento – mas não uma inexistência.
Outro exemplo que poderia dar é quando afirmo que “as imagens nunca foram tanto imagens”. Não me importa tanto se é verdade que em nossos tempos é proeminente que as imagens sejam mais essa superfície textural do que transmissoras de sentido. Importa é, sem dúvida, afirmar que existem imagens que podem se destacar por sua superfície e outras que podem se destacar pelo sentido. Assim também quando digo que “o sentido encontra-se mais proeminentemente entre algumas entidades protagonistas, em alguns momentos, e entre muitos figurantes, em outros momentos”, não me importa tanto ficar apontando “olhem é aqui que o sentido se manifesta entre protagonistas, tenham aqui e acolá como exemplo”.
Ao estilo dos “pré-imanentes”, que inventei ao longo dessa narrativa (aqueles descritos nas primeiras partes de O Caminho Desconhecido), importa-me são essas regras mais gerais imersas em tantas afirmativas que dei como certas ou axiomáticas. Importante é colocar as coisas em debate, coisas que antes não eram debatidas. Se afirmei coisas como indiscutíveis é porque defendo que isso também seja feito: afirmemos axiomas e verdades eternas! Saibamos entretanto que esse método é apenas um artificio, para questionar outras verdades indiscutíveis e tão difundidas.
Mas por vezes façamos algo de inteiramente novo, sem nos preocuparmos em questionar e criticar, apenas preocupados em produzir, em afirmar sem preocupação, em criar e sermos criativos. E saibamos todos: não há nada mais questionador e crítico do que isso. Ao elaborarmos algo de novo, que talvez repitamos por diversas vezes em novos textos, músicas e vídeos, nós estamos meio que invadindo o mundo do entes com novas entidades que disputarão espaço com outras entidades prévias, antigas e “imóveis”. Não há nada tão contestador do que isso.
Outras vezes não se tratará de repetirmos nada, apenas traremos à tona um elenco enorme de variedades e alternativas. Deixemos que outras pessoas reproduzam mais tarde nossas novas ideias: o que será também um justo trabalho pois poderá manter as nossas inovações vivas. Um dia estas também se esgotarão e demandarão serem substituídas, seguindo o mandamento do destino que prevê que “nada é permanente, exceto a mudança”.