Pedro Tauil; Leônidas Deane; Paulo Sabroza; Cláudio Ribeiro
Dentre as doenças transmissíveis, a malária é hoje o principal problema brasileiro. Nos últimos anos vem sendo muito alta a velocidade de crescimento de sua taxa de incidência, acompanhando, aliás, uma tendência internacional Entretanto, há poucos anos sonhava-se em erradicá-la, tão promissoras pareciam as ações de saúde pública então empregadas. Por que esta notável reversão? Teria sido possível evitá-la, ou trata-se de um fenômeno contra o qual não se dispõe de armas?
Para abrir esta seção de Debate em nossa nova revista, o Centro de Estudos da Escola Nacional de Saúde Pública reuniu quatro especialistas que, por mais de três horas e com a participação do auditório, debateram vários aspectos da questão.
A principal exposição foi a do Dr. Pedro Tauil, Diretor Geral do Departamento de Erradicação e Controle de Endemias da Sucam, que fez uma descrição da malária e de seu combate, hoje, no Brasil, apresentou dados relativos ao aumento da incidência da doença, relatou as dificuldades enfrentadas pela Sucam.
Seguiu-se a ela a fala do Prof. Leônidas Deane. Grande entomologista e homem de notável cultura, refez brevemente o caminho do conhecimento e da luta contra a malária.
A seguir, o Dr. Paulo Sabroza, do Departamento de Epidemiologia da ENSP, apresentou o que para ele seriam os pontos cruciais do problema.
Finalizando, o Dr. Cláudio Ribeiro, do Departamento de Imunologia do IOC, apontou alguns dos caminhos percorridos na busca da vacina antimalárica.
O que vamos ler a seguir é uma reelaboração, pelos autores, do que então disseram e que, por meio dos Cadernos de Saúde Pública, levamos ao alcance de um público maior.
No trabalho diário da Sucam no controle da malária, identificam-se problemas cuja solução não está na própria instituição; está nas instituições de pesquisa, de ensino, e, principalmente, está em outros setores da sociedade que também trabalham na Amazônia. É destes problemas que quero falar.
Porque hoje em dia a malária no Brasil se concentra praticamente na região amazônica; e, mesmo aí, ela não apresenta uma distribuição homogênea. Ela se focaliza em deter minadas localidades — eu não digo nem municípios — que concentram grande parte dos casos. E por que estas localidades concentram os casos? Porque são sedes de projetos de desenvolvimento econômico e social que determinam fluxos migratórios de grande importância social, processando-se de forma bastante intensa e em condições muito precárias.
Quando se fala do aspecto social da malária, o que é de maior importância em sua transmissão? Além dos hábitos das pessoas, existe um problema básico: desde a época de Carlos Chagas, nós acreditamos que a transmissão da malária é fundamentalmente domiciliar, pelos hábitos dos vetores e pelos hábitos das pessoas ficarem a maior parte do tempo em casa. Porém, na região amazônica, nessas localidades de alta transmissão, esse princípio não subsiste porque o tipo da habitação — sem paredes — não abriga as pessoas, quer dizer, não cria uma barreira entre as pessoas e o mosquito; ao mesmo tempo, dificulta o seu controle, porque não se tem onde colocar o inseticida, que é um dos fundamentos do programa clássico de controle e de erradicação da malária. Desde 1947 o inseticida é a principal arma, quando se começou a usar o DDT no país — esporadicamente, mas se começou. A erradicação era feita por etapas, inicialmente, com o DDT aplicado na região Nordeste e o sal cloroquinado na região amazônica. Deste eu quero falar inicialmente.
O uso do sal cloroquinado, tão bombardeado, tão criticado posteriormente, tem um princípio que é muito importante e que, na minha opinião particular, é muito válido: diante das dificuldades operacionais de trabalho na região amazônica — acesso muito difícil a localidades em grande parte do ano — a possibilidade de se fazer chegar uma substância quimioprofilática, através de consumo obrigatório, esse princípio ainda merece ser pensado. Hoje em dia no Brasil foi abandonado, basicamente por três razões. Primeira, a dificuldade de se controlar a entrada do sal cloroquinado na região amazônica. Segunda, por um problema técnico: a cloroquina é muito solúvel em água e em regiões úmidas ela se deposita no fundo do saco; com isso a população ingere uma quantidade inadequada nas partes superficiais e quando chega ao final o sal fica muito amargo, pelo gosto da cloroquina, e então jogava-se fora a parte de baixo. Terceira, é que posteriormente se passou a atribuir ao uso indiscriminado do sal cloroquinado o aparecimento de cepas resistentes de Plasmodium falciparum por subdosagem que a população estava ingerindo de cloroquina. Essa é uma interrogação, mas é uma hipótese que pode explicar o aparecimento de muitas cepas resistentes aqui no Brasil. Por outro lado, o uso indiscriminado e por tempo indeterminado de cloroquina traz problemas: como vocês sabem, pode trazer problemas principalmente de natureza oftalmológica. Essas razões todas levaram ao abandono, posteriormente, do sal cloroquinado.
Então se passou a utilizar também o DDT na região amazônica. A área malárica do país, isto é, a área onde há condições de transmissão da doença é grande parte do território nacional. Nós temos 6,9 milhões de km2 dos 8,5 milhões existentes no país. Somente o Rio Grande do Sul, o Distrito Federal e a ilha de Fernando de Noronha é que são totalmente não-maláricos, isto é, não há condições de transmissão; no restante do país todos os estados são totalmente ou parcialmente maláricos. Por exemplo, no Rio de Janeiro temos a presença do vetor em determinadas áreas, o que exige da Sucam uma vigilância ativa, uma vez que a entrada de pessoas da região amazônica pode gerar focos de malária. São Paulo, para se ter uma idéia, com a pressão de entrada no ano passado teve 1.600 casos, e este ano já teve focos autóctones de transmissão na região do rio Paranapanema e na fronteira com Mato Grosso, focos de importância epidemiológica, por malária introduzida por pessoas provenientes da região amazônica.
Como eu falei, em 1961 foi usado o sal cloroquinado na região amazônica, e até 1972 houve variações quanto à cobertura da área malárica em termos de inseticida. A partir deste ano se alcançou uma regularidade maior. Agora estamos partindo não mais para uma cobertura total da área de transmissão, mas, por razões econômicas e epidemiológicas, estamos procedendo a um sistema de estratificação epidemiológica, procurando atuar prioritariamente nas áreas identificadas como geradoras de casos de malária. A estratégia atual que o Brasil adota foi recomendada numa reunião da Assembléia Mundial de Saúde e dividiu o país em duas partes: uma, a região amazônica ou da Amazônia legal, que é a área de erradicação a longo prazo; isso pode ser entendido como um eufemismo para controle, porque, na época, quando se optou entre controle ou erradicação, isso criou uma polêmica bastante grande no mundo todo e praticamente o nome controle foi abandonado do vocabulário malariologista. E, como não se podia propor uma erradicação na região amazônica, pelas dificuldades dessa erradicação, optou-se por "área de erradicação a longo prazo", enquanto que "área de erradicação a curto prazo" seria fora da região amazônica, onde, na verdade, a gente espera nesses próximos dois anos extinguir os últimos Jocos residuais. A metodologia utilizada contra a malária se baseia na bonificação intradomiciliar do inseticida de efeito residual que atua em superfície e que mata o mosquito por contato. Esse é o princípio, visando não acabar com o Anopheles, mas interromper a transmissão através da eliminação dos mosquitos contaminados que, por ocasião do seu repasto sanguíneo, pesados, pousam nas paredes e, encontrando inseticida, são então eliminados e não reproduzem a doença em outras pessoas.
A BUSCA E O TRATAMENTO DE CASOS
A verdade é que a busca e o tratamento de casos nunca foi, a não ser em áreas especiais, a ênfase do programa — são feitos para se reduzir também em termos epidemiológicos a fonte de contaminação do mosquito. E é bom que se diga que a malária humana é uma malária só humana; nós não temos reservatórios de importância epidemiológica em outros animais. Então, esgotado o parasita no homem, a doença estaria erradicada. Medidas complementares são utilizadas, usando drenagem, saneamento, aterro de criadouros, limpeza de criadouros e aplicação de larvicidas quando não se pode eliminar o criadouro.
Os fundamentos que norteiam o programa de erradicação, em todo o mundo, são: primeiro, a transmissão domiciliar da doença; segundo, a disponibilidade de um inseticida que atua por efeito residual em superfície, por contato; terceiro, a possibilidade de esgotamento natural do parasita no homem, quer pela morte, quer pelo tratamento — ou então, no momento em que as pessoas infectadas adquirem imunicidade, elas podem naturalmente esgotar o parasita dentro de si mesmas.
O mapa I mostra a situação em 1983: a parte pontilhada é a área de erradicação a longo prazo; esses pontos fora da região amazônica são os pontos de focos residuais. Essa área hachureada horizontalmente é chamada de "prioridade 1", onde se concentra o maior número de projetos de desenvolvimento sócio-econômico, atraindo grandes fluxos migratórios. Então, por exemplo, desde a divisa com a Colômbia até Manaus, o Solimões todo e o Médio Amazonas até a divisa com o Pará, temos uma área onde praticamente não existe malária: uma área de população estável, que também não apresenta uma alta densidade do principal vetor, Anopheles darlingi. E, como é área de população estável, as casas são mais ou menos adequadas. Tudo isso permitiu que se suspendesse inclusive a borrifação de DDT nessa área. O gráfico I mostra a incidência parasitária anual. 1970 registrou o índice mais baixo de incidência de malária no Brasil, em torno de 51 mil casos registrados. E é bom lembrar que, na década de 40, segundo publicações de Barros Barreto, a estimativa era em torno de 6 milhões de casos de malária. Então houve realmente uma redução. Mas na região amazônica, a partir de 70 — que coincide com a intensificação da ocupação da Amazônia, com incentivos fiscais para empresários de outras áreas investirem na região — a situação epidemiológica se reverte, levando hoje não só ao aumento absoluto do número de casos, mas também ao aumento relativo em termos de taxa de incidência: 297 mil casos foram registrados em
Para esse acréscimo do último ano, temos várias explicações; não justificativas, mas explicações. Primeiro, tivemos problemas de medicação. Segundo, tivemos problemas relativos ao abastecimento de inseticida — a única fábrica que produzia DDT no Brasil fechou suas portas, tivemos que importar, e todo o processo de importação é extremamente lento, cheio de burocracia. Levamos quase um ano, e no segundo semestre desse ano chegamos ao nível mais baixo de cobertura entre o programado e o realizado: menos de 60% do programado foram cumpridos por falta de inseticida. Outra coisa também aconteceu em 1983: subiu a relação entre Plasmodium falciparum e vivax; sempre houve predomínio de Plasmodium vivax em relação ao falciparum, mas, com a deterioração do programa nesse último ano, a tendência é aumentar o número de Plasmodium falciparum em relação a vivax. Nós ainda tivemos em 1983 mais vivax, mas o número de falciparum já chegou muito perto do vivax.
As tabelas I e II mostram a situação da malária em 1983. Para se ter uma idéia, temos o registro de 297.687 lâminas positivas, sendo que 286 mil da região amazônica. Fora desta região, tivemos 10.600 casos positivos, dos quais 9.910 foram importados da região amazônica ou de outros países, mas principalmente da região amazônica. Portanto, tivemos autóctones 1.386 casos. Então, em torno de 99,5% dos casos de malária ocorreram na região amazônica da área a longo prazo.
Isto, se por um lado nos anima, não afasta o perigo que outros países estão correndo. O Peru, por exemplo, está tendo malária hoje numa região onde há muito tempo já havia sido interrompida a sua transmissão, na sua área mais rica, a área do Pacífico. A Colômbia está com um número absoluto de casos maior que o do Brasil. E a Turquia, que chegou a um número muito pequeno de casos, voltou a ter transmissão, exportando casos para a Grécia, para a Romênia, criando um problema para os países desenvolvidos. Então, como se vê, o problema da malária não é so brasileiro; as razões brasileiras são muito importantes e precisamos trabalhar nesses fatores, mas é um problema que está se agravando em todo o mundo, não só na América Latina, mas em todo o mundo subdesenvolvido. Ocorreu agora recentemente um episódio num país que estava com a malária sob controle, o Paraguai, que teve um episódio gravíssimo. Nós tivemos, inclusive, que mandar medicamentos, porque eles já estão despreparados para essa situação. Bom, isso é para mostrar a vocês que há necessidade de se mante a vigilância fora da região amazônica, porque não podemos correr esse risco que outros países estão correndo, de "sujar" áreas já limpas de malária.
O mais importante foco no ano passado foi Camaçari: 357 casos. Camaçari está nas vizinhanças de Salvador, uma área de alta importância econômica, com populações procedentes da região amazônica, em busca de emprego no pólo petroquímico numa área, Recôncavo Bahiano, onde existe vetores, darlingi e acquasalis. Nessa região tivemos um foco de grandes proporções, quando não tínhamos tido nenhum desses focos no ano de 1982 (quando o maior foco fora da região amazônica foi de 71 casos, em Pernambuco). Houve, provavelmente, falhas na detecção precoce desse foco de Camaçari, o que mostra que é preciso estar sempre atento à reintrodução de casos provenientes da Amazônia. Tivemos focos na Bahia, no Espírito Santo, em Goiás — fora da região amazônica de Goiás — Minas Gerais, Rio de Janeiro — aqui, em Poço das Onças, Duque de Caxias, tivemos 5 casos — no Piauí, em Alagoas. O Piauí é um lugar onde aparecem muitos focos, dada a proximidade com o Maranhão.
Também num lugar que há 20 anos não tinha malária, no vale do São Francisco, em Propriá, tivemos um foco em torno de 20 casos e que foi controlado, mas isso sempre cria pânico na população.
Temos algumas explicações para o problema da malária na região amazônica.
Condições de ordem ambiental — temos temperatura, umidade elevada, chuvas abundantes. Isso favorece a proliferação do mosquito e também encurta o período de vida extrínseco do Plasmodium no mosquito, tornando mais rápida a capacidade infectante do mosquito infectado num portador.
Habitações precárias que facilitam a atividade vetorial — o contato homem/vetor é muito intenso em determinadas localidades da Amazônia, não só pela falta de paredes, mas pelo hábito de dormir de calção por causa do calor. Então, com o dorso nu, o peito nu e as pernas descobertas, há uma extensa superfície para o contato do mosquito.
Larga dispersão e antropofilia do principal vetor — na região existe um vetor de muita importância, de dispersão bastante grande e com preferência por sangue humano: o Anopheles darlingi
Entre os fatores que dificultam o controle, temos:
Baixa densidade demográfica e dispersão populacional — isso faz com que os custos do programa na região amazônica, como se diz brincando, sejam custos amazônicos. Em Rondônia, por exemplo, nossas viaturas têm uma vida média em torno de dois anos; não agüentam por períodos mais prolongados. O consumo de combustível é enorme. Nós usamos óleo diesel nos barcos, e a cota de óleo diesel da Sucam é cortada anualmente, na política do governo de reduzir o consumo de combustível. Então, nessas circunstâncias, os custos de um programa são muito elevados .
O rendimento do guarda na Amazônia é diferente do rendimento do guarda no Nordeste. Em termos de número de casas, há guardas que fazem no máximo quatro casas por dia, o que faz com que o programa exija maior mão-de-obra. Todos são fatores que elevam os custos do programa.
Acesso difícil a grande número de localidades — há localidades nos altos rios onde, na época da seca, não há barco que chegue até lá; por outro lado, há áreas nas várzeas que na época do inverno se inundam. Isso exige que os ciclos de bonificação estejam adequados a essas condições.
Fluxos migratórios — como já falamos, esse é o principal dado do programa de malária: é o fluxo migratório intenso, desordenado, desesperado, muitas vezes, em que as pessoas vivem em condições precaríssimas de habitação, pessoas procedentes de áreas onde há muito tempo não há malária, que têm uma suscetibilidade muito maior para a doença, fazendo com que os casos não só atinjam parasitemias mais elevadas como também com riscos de letalidade maior.
Presença de Plasmodium falciparum resistente à cloroquina em algumas áreas — nós temos cepas de Plasmodium falciparum resistentes à cloroquina, que é a única medicação disponível para uso em massa, com segurança, pelo nosso guarda. Temos outras drogas que atuam no Plasmodium falciparum resistente ou que ainda não criou um grau de resistência suficiente, mas essas drogas não podem ser usadas em uma distribuição maciça, através do pessoal não médico. Nem todas essas resistências à cloroquina são de grau 3 ou resistência 3, que é a mais alta, isto é, onde a parasitemia não só não cai, como se eleva. Pela resistência existente — como vimos nos trabalhos recentes desenvolvidos pela Divisão de Epidemiologia da Sucam — temos ainda, vamos dizer assim, autoridade para continuar usando a cloroquina, uma vez que 70% dos casos são sensíveis ou R1, isto é, há uma eliminação da parasitemia, mas que depois de algum tempo pode recrudescer. Nós estamos aguardando a liberação de um produto, que vamos discutir daqui a pouco, que poderá resolver esse problema.
Atividade exofílica do vetor em alguns locais — é um assunto discutível, e eu sigo orientação do Prof. Deane, de que primitivamente o Anopheles darlingi é um mosquito silvestre. É claro, ele se domicilia à medida em que haja uma densidade de casas suficiente para ele preferir o domicílio. Mas, o que acontece? A população procedente do Paraná — já constatamos isso em Rondônia, na região de Ariquemes, por exemplo — tem hábitos diferentes: eles ficam trabalhando nas linhas de colonização até mais tarde, até 6:00h. À hora do pique da atividade anofélica, a partir das 5:00, 5:30 da tarde, eles estão no campo, expostos a picadas de mosquitos. Isso impossibilita o controle através de inseticida dentro de casa. Numa epidemia de malária que houve em Belém, uma das razões era as pessoas ficarem fora de casa (acho que antes da televisão), tomando a fresca, conversando na hora do crepúsculo. Isso fazia com que as medidas inseticidas não fossem tão eficazes quanto em outras áreas onde esses hábitos não existiam.
ESTRATÉGIAS DE ATAQUE
Quando analisamos o Pará, vemos que, dos 83 municípios, somente 15 são de alta transmissão e são responsáveis por 78,6% dos casos de malária no estado. Isso mostra o que tentei falar no começo, a concentração dos casos de malária ou a focalização dos casos da malária na região amazônica. No Acre, os municípios de Rio Branco, Plácido de Castro e Senador Guiomar são os mais importantes. Pará e Rondônia hoje são responsáveis por mais de 60% da malária no país e, na verdade, a concentração de esforços nessas áreas é uma meta que nós estamos desenvolvendo. No último mês de maio, pela primeira vez, o estado do Pará mostrou, comparado com maio do ano anterior, um menor número de casos de malária. Um aprimoramento operacional, com determinadas medidas que se está tomando, poderá melhorar um pouco essa situação; a Sucam no momento busca uma adequação da estratégia, pois não temos nenhum princípio milagroso para modificar a forma de atuar.
Duas coisas são importantes.
Primeira, o envolvimento de outros setores da sociedade no controle da malária. Vamos dar um exemplo: o INCRA e a Eletronorte são duas instituições de muita importância na região amazônica, pelos projetos que desenvolvem. Já celebramos convênios com ambas. O INCRA, no momento, está bastante sensibilizado para o problema: já no traçado topográfico dos seus projetos eles estão procurando respeitar os divisores de água, para dificultar a formação de novos criadouros ao lado das estradas. Isso é um comprometimento oficial. Ademais, nos projetos novos, eles têm fornecido dois metros cúbicos de madeira serrada, antes que as pessoas tenham tempo de fazer suas casas definitivas, para que desde o primeiro momento se tenham condições de aplicar o inseticida. Finalmente, ele nos mantém informados dos fluxos migratórios, porque às vezes se descobria em determinada área uma explosão de gente chegando, e já era um projeto de assentamento do INCRA. . . Esses acordos, essa articulação interinstitucional nós estamos buscando. Com a Eletronorte também, depois de muito esforço, conseguimos sensibilizar a empresa para esse trabalho conjunto, tanto fornecendo recursos para áreas de inundação — para a população que vai sofrer influência do Lago de Tucuruí — como também para pesquisas que têm sido desenvolvidas na área, além de medidas protetoras a tempo, para se evitar a explosão de malária nessa área.
Segunda, a participação da população. Nós temos um exemplo recente, que é o projeto de assentamento de Jumas, no Amazonas, onde o trabalho de uma educadora da Sucam foi bastante eficaz no envolvimento da população no sentido de participar não só na identificação precoce dos casos de malária, mas também na aplicação de óleo queimado nos criadouros próximos das residências, com óleo fornecido pelo Batalhão de Engenharia do Exército. Nós acreditamos que sem uma articulação assim nós não conseguimos muito êxito. Lamentavelmente, estender isso para toda a área amazônica é um pouco difícil. Por exemplo, no garimpo a situação não é tão fácil assim; o grau de envolvimento comunitário no caso do projeto de assentamento é muito maior, o grau de adesão comunitária é muito maior no projeto de assentamento do que no garimpo. Aqui nós encontramos dificuldades maiores, mas eventualmente tentamos a colaboração dos donos dos garimpos, quando é viável eles mesmos aplicam inseticidas — temos um teste, atualmente, no Pará, onde os próprios donos dos garimpos aplicam o inseticida em ultrabaixo volume, em áreas com casas sem parede.
Essa é uma adequação estratégica: a articulação intersetorial e a participação da população. Ainda não temos instrumentos suficientemente eficazes para que isso seja rápido; e, pela própria natureza, é um trabalho difícil.
PRIORIDADES DE PESQUISA
Ao lado disso, temos necessidade de algumas pesquisas que pudessem melhorar nosso arsenal tecnológico, um instrumental mais adequado para a realidade da Amazônia. Em termos de pesquisa, considerando o vetor, parasita e hospedeiro, nós estamos, no primeiro caso, apoiando estudos que mostrem, confirmem ou tragam novos elementos a respeito dos vetores da malária na região amazônica, para que, em função disso, possamos conhecer um pouco melhor o comportamento e a biologia dessas espécies vetoras, o que poderá trazer uma adequação melhor das medidas a serem aplicadas.
Especificações da relação parasita/vetor — uma hipótese já levantada algum tempo atrás e agora renovada é a de que alguns vetores só transmitem o Plasmodium vivax; o darlingi transmitiria vivax e falciparum. É uma hipótese, e realmente, com o advento de uma técnica descoberta pelo grupo da Profa. Ruth Nussenzweig, que está trabalhando com a vacina, obtivemos um subproduto de extrema importância: através de radioimunometria está se podendo verificar, com anticorpos monoclonais, a espécie de Plasmodium que infecta determinados vetores; antes, pela dissecção, não podíamos chegar à identificação da espécie do esporozoíto.
Hoje, essa técnica poderá trazer elementos importantes com relação ao aspecto da especificidade vetor/parasita.
Inseticidas alternativos ao DDT — O DDT é um organoclorado, condenado na agricultura, recomendado ou tolerado na saúde pública. Eu queria explicitar que nós o estamos utilizando por recomendação ainda da Organização Mundial de Saúde, pois o DDT usado em saúde pública é colocado em superfícies; quando a pessoa recebe esse DDT, é por aspersão, não por ingestão, onde a absorção é muito maior, como na agricultura. E estudos da OMS, feitos pelo Prof. Waldemar de Almeida há algum tempo, coordenados por ele aqui no Brasil, mostraram que os guardas da Sucam (naquela época, Serviço de Malária) expostos durante muito tempo ao DDT, não chegariam a ter níveis tóxicos de organoclorado no tecido gorduroso. Em saúde pública ele é tolerado. Mas é claro que, se tivéssemos um inseticida com odor menos intenso, melhor aceito pela população, com efeito residual semelhante ao DDT, nós o preferiríamos, porque estamos tendo, cada vez mais, dificuldades no abastecimento do mesmo, pelas razões que comentei no começo.
Formas mais eficazes de aplicação — Muitas vezes, nessa região de casas sem paredes, a aplicação de inseticida na forma de ultrabaixo volume, aplicações espaciais do inseticida podem ser tentadas, para viabilizar um pouco essa ação no programa.
Controle biológico — É uma coisa muito importante. Hoje também já se fala em Bacillus esfericus, que teria efeito residual maior, do que o Bacillus turingiemis israelensis; mas nós ainda não o introduzimos na rotina, porque não temos ainda informações suficientes que nos autorizem o uso desses produtos. Estamos apoiando pesquisas nessa área. Recentemente esteve no Brasil uma autoridade nesse campo, dando uma consultoria à Sucen, o órgão que cuida das endemias de São Paulo, procurando mostrar o uso do Bacillus turingiensis no controle de simulídeos, e a Sucen ficou muito entusiasmada.
Em Porto Velho, estamos, atualmente, solicitando uma consultoria para que se possa propor um projeto de utilização de peixes larvófagos ou então de inseticidas biológicos, como são chamados esses bacilos, para verificar a possibilidade de reduzir o número de criadouros, o que poderá reduzir o risco de transmissão da doença naquela cidade.
Larvicidas ecologicamente mais seguros — A gente usa muito, como larvicida, o óleo queimado; mas hoje já é mais difícil obtê-lo. Há outros, ecologicamente mais seguros e de preço acessível. O Temefós pode ser utilizado, mas seu custo o inviabiliza para uso em grandes extensões. Essas atividades larvicidas são reservadas para as áreas urbanas ou periurbanas, ou pequenas localidades; ninguém está pensando em aplicar larvicida pela Amazônia toda, mas em determinadas áreas eles têm a sua indicação.
Relativo ao parasita:
Cultivo contínuo de Plasmodium — toda a potencialidade desse cultivo não está explorada ainda, mas alguma coisa se visualiza: por exemplo, a caracterização iso-enzimática de cepas de Plasmodium falciparum numa eventualidade de se precisar usar uma vacina como a que está sendo desenvolvida na França, também por um pesquisador brasileiro, Dr. Hildebrando Pereira da Silva, que é uma vacina cepa-específica, não espécie-específica. Então é preciso ter a caracterização das espécies na área onde ela vá ser utilizada. Por outro lado, há o fornecimento de antígeno puro, quer dizer, antígeno sem "contaminação" do doador do antígeno para testes sorológicos que poderão ser desenvolvidos. Não há ainda no Brasil quem cultive Plasmodium vivax, só existe cultivo contínuo de Plasmodium falciparum. Parece que nos Estados Unidos se conseguiu agora o cultivo de vivax. O cultivo contínuo também serve para testar a suscetibilidade do Plasmodium aos diversos antimaláricos, e, por outro lado, tentar descobrir mecanismos que possam retardar o aparecimento dessa resistência.
Estudo de novas drogas antimaláricas — isto é fundamental, uma vez que estamos encontrando resistência de Plasmodium falciparum às drogas atuais, e essas novas drogas precisam unir o custo à operacionalidade. A mefloquina é a droga que está mais avançada nesse momento no mundo. A mefloquina é muito operacional, porque é usada em dose única, via oral e bastante eficaz. Está sendo testada em Zâmbia, Tailândia e no Brasil, já em fase final de ensaios clínicos, no Hospital Barros Barreto, em Belém. Essa droga promete muito, em termos de eficácia.
Desenvolvimento de uma vacina — A epidemiologia da malária na região amazônica se aproxima muito da epidemiologia da febre amarela, porque as pessoas entram na mata. O indivíduo não vai ter o mínimo de proteção, não há maneira de protegê-lo, quando ele vive dentro da mata. O estudo de uma proteção individual por um agente imunoprofilático eficaz seria fundamental; teria um papel muito grande no controle da malária.
Aprimoramento de técnicas sorológicas de diagnóstico — o diagnóstico hemoscópico, apesar de ser bastante específico, não é suficientemente sensível para detectar portadores assintomáticos, pessoas com baixa parasitemia e que estejam entre uma crise e outra de vivax, entre uma recaída e outra de vivax. Em Santa Catarina nós desenvolvemos um trabalho que teve uma participação de educação sanitária muito grande, porque é uma população muito resistente ao uso prolongado do DDT. Fizemos diagnósticos sorológicos de toda a população e só tratamos daqueles sorologicamente positivos; com isso reduziu-se o universo de vinte e poucas mil pessoas — que seria um tratamento coletivo e dificilmente aceito — para uma população de 500 pessoas, que o aceitou bastante bem, porque essas pessoas viram que tinham alguma marca, apesar de nós sabermos que estávamos pecando por excesso — mas, se eventualmente tivesse algum portador, ele estaria naquele grupo com sorologia positiva. Mas a técnica sorológica por imunofluorescência tem alguns problemas e eventualmente uma técnica mais simples seria mais prática.
Relativamente ao hospedeiro, temos:
Estudo dos diferentes complexos de transmissão — a forma de transmissão da malária na Amazônia é diferente da forma de transmissão em outras áreas. Não que o agente ou hospedeiro, ou o vetor, sejam diferentes, mas pela maneira, pela forma como as pessoas vivem, pelo tipo de habitação, formam-se complexos diferentes de transmissão.
Determinação de nível de imunidade de populações — para nós, hoje em dia, não há uma técnica que meça a imunidade da malária, os anticorpos humorais não são suficientes para medir o grau de imunidade protetora que o indivíduo possui, apenas mostra um contato maior ou menor com o parasita.
Estudo de determinantes sócio-econômicos da doença — para nós é um dos estudos mais importantes; estamos apoiando o Cedeplar, de Minas Gerais, que está estudando a fronteira agrícola brasileira e preocupado em ver o papel da malária, como a malária repercute na população e também a percepção que a população tem da doença e seus mecanismos de controle.
Em poucas palavras, era isso o que eu tinha a dizer. Creio que já me alonguei demais, e gostaria de ouvir os outros colegas.
PROF. DEANE:2
Todos nós, sem dúvida alguma, aprendemos muito com a palestra do Tauil sobre a expansão da malária e sobre o que a Sucam está fazendo para enfrentar o problema.
A gente está vendo que esse aparente fracasso — porque se pode assim supor, erradamente, pelo aumento do número de casos que ocorrem anualmente — não é absolutamente um fracasso, é uma situação realmente inevitável. A gente tem a impressão de que a malária na Amazônia, hoje, é mais um problema de ecologia humana; naturalmente ainda exige 3alguns estudos — não vou dizer que a pesquisa seja dispensável, realmente ela pode ajudar bastante em alguns aspectos — mas esse incremento da malária naquela região é mais um problema de ecologia humana.
São, aliás, dois os fatores que acho muito importantes. Primeiro, a ecologia humana, quer dizer, essa imigração praticamente desordenada e incontrolada na região amazônica. Segundo, a questão de verbas. Realmente, para o controle eficaz da malária, aqui no nosso país, seria necessária verba muitas vezes maior que a atual. É um problema que exige, naturalmente, ainda algum estudo, mas em comparação com os dois fatores citados, a pesquisa é quase secundária, porque se fosse possível controlar a imigração para a Amazônia de outra maneira, e se houvesse verba suficiente, tenho a impressão que o problema, talvez mesmo sem muitas investigações científicas, poderia ser controlado. Quero só lembrar que, mesmo antes de se saber que a malária era transmitida por mosquitos, já em várias partes do mundo existia um certo controle da malária — a relação entre malária e águas paradas, por exemplo, é muito antiga: os romanos já faziam o controle nos arredores de Roma, naturalmente pela secagem de pântanos. Paludismo vem de palus, que significa exatamente água estagnada ou pântano.
As relações entre os vetores e as possibilidades de se controlar a malária têm na sua história alguns aspectos interessantes. Em 1898 Ross descobriu que a malária das aves era transmitida por mosquitos, e, no ano seguinte, Grassi, Bastianelli e Bignani verificaram que a malária humana era transmitida por anofelinos. Ross tinha demonstrado a transmissão da malária aviária por culicinos, mas foram os italianos que mostraram, na verdade, a transmissão da malária humana por anofelinos — embora Ross tenha recebido o Prêmio Nobel pela descoberta. Mas a verdade é que, um ano depois da descoberta da transmissão da malária aviária, por mosquitos, e no ano em que os italianos descobriram a transmissão da malária humana por anofelinos, já Ross estava em Serra Leoa, na África, fazendo as primeiras campanhas antimaláricas baseadas no conhecimento do vetor. Essas campanhas eram feitas pela maneira que se podia pensar naquela ocasião: eliminando os criadouros das larvas dos mosquitos, eliminação feita por métodos de pequena hidrografia, isto é, aterro, drenagem etc. E mesmo naquela época já se começou a usar querosene no controle das larvas, porque se sabia que em lugares onde se depositava querosene, ou óleo, havia a eliminação das larvas dos mosquitos.
O primeiro controle eficiente de malária foi aparentemente o feito em 1901, na Malásia. Malcolm Watson — um inglês recém-formado — foi para lá e, entusiasmado com as descobertas do seu patrício Ross, resolveu tentar o controle nos arredores de Kualalumpur, a capital do país. Havia malária perto de uma área florestada, ele desmatou a área e a malária desapareceu, porque o transmissor era um mosquito chamado Anopheles umbrosus, que cria na sombra. Ele mesmo, alguns anos depois, tentou usar igual processo de controle numa área, montanhosa, da Malásia; procedeu ao desmatamento durante um surto de malária e esta aumentou muito. Por que? Porque o transmissor era diferente; era o Anopheles maculatus, uma espécie heliófila, que cria em depósitos ensolarados, ao contrário do umbrosus, que cria em depósitos sombreados. Esse mesmo Watson, ainda na Malásia, conseguiu controlar a malária em áreas litorâneas, por sistemas de diques, impedindo a entrada da água salgada em terrenos onde a chuva provocava uma concentração de cloretos, ótima para o desenvolvimento de um anofelino, o Anopheles sundaicus, que cria em água salobra. Então, esse indivíduo utilizou métodos diferentes para o controle da malária, mas o que na verdade resultou na eliminação da malária nas áreas onde trabalhou foi o serviço de drenagem que instituiu. Drenagem às vezes superficial, mas foi ele quem primeiro utilizou drenagem subterrânea para o controle de malária, e seu trabalho resultou realmente numa diminuição muito grande do paludismo nas regiões da Malásia onde atuou.
Outro caso: quando os americanos tomaram as Filipinas dos espanhóis, no fim do século passado, resolveram estacionar os soldados nos flancos das montanhas, porque naquela época a idéia que se tinha era que a malária era uma doença de pântanos; então, em vez de deixar seus soldados nas planícies pantonosas, os acamparam nos flancos das montanhas; ao contrário do que esperavam, ocorreu um grande surto de malária, porque o transmissor nessa área era o Anopheles minimus, que cria em córregos de montanhas.
Esses fatos, ocorridos logo no príncipio do século, foram acumulando informações segundo as quais foi se verificando que a malária não era transmitida por anofelinos, mas por determinadas espécies de anofelinos, que tinham hábitos diferentes e que portanto era muito importante saber qual era o transmissor em cada área, para se poder controlar a doença. Porque existem anofelinos que são heliófilos nas suas fases imaturas, criam em lugares ensolarados, enquanto outros criam em lugares sombreados; mosquitos que criam em água parada, outros em água corrente; mosquitos que 4criam em água doce, outros em água salobra. Enfim, os criadouros são tão variados que, realmente, sem se conhecer quais eram os criadouros preferenciais, naquela época, não se podia fazer controle de malária. Porque, no início das campanhas contra a malária, o controle visava as larvas dos mosquitos; era feito só contra as larvas, contra os criadouros — drenagens, aterros, retificações de vales, desflorestamento, aplicação de óleo eram os métodos que se usavam no combate à malária, todos ligados exclusivamente à luta anti-larvária.
No princípio do século houve alguns trabalhos de controle que foram bastante eficientes. Por exemplo, o controle da malária no Canal do Panamá, que foi realizado por Gorgas, depois do sucesso que a Comissão Americana obteve na campanha contra a febre amarela em Cuba, combatendo o Aedes egypti. No Panamá essa campanha foi feita já de uma maneira um pouco diferente, utilizando em grande parte o quinino como profilático; mas ao mesmo tempo tentando acabar ainda com os criadouros. Eram os métodos então usados e que traziam resultados vantajosos.
Naturalmente que nessa época também se pensava na proteção contra os mosquitos adultos; não se lutava contra eles, mas se procurava deles proteger as pessoas. Por exemplo, por telagem de casas, como foi feito na construção do Canal do Panamá. Mas o combate ativo era feito pelo anti-larvário, baseado nessas medidas de engenharia sanitária e também na aplicação de óleo. Por volta de 1922, um americano, Barber, verificou a importância do verde Paris como larvicida contra os anofelinos. E, a partir dessa época, começou a se utilizar também esse larvicida, que teve uma vida de uns dois decênios, sendo utilizado em muitas campanhas, com bastante sucesso, sob a forma de um pó muito fino que flutua — e como as larvas dos anofelinos se alimentam na superfície da água, elas é que são realmente atingidas pelo verde Paris.
Pois bem, desde o princípio do século se descobrira que, queimando crisântemo (e depois se verificou ser por causa do piretro), se podia matar os mosquitos adultos de determinadas áreas, o piretro foi assim o primeiro adulticida empregado com eficiência, embora a queima de enxofre, por exemplo, tenha sido utilizada para afugentar anofelinos em algumas campanhas de controle, como, por exemplo, nas campanhas feitas por Carlos Chagas no princípio do século. Carlos Chagas, aliás, foi quem primeiro imaginou, acho que em 1905, não me lembro bem, a possibilidade de se combater a malária na sua transmissão intradomiciliária, porque antes disso se achava que, de um modo geral, ela era transmitida principalmente fora das casas. Mas, depois dessa verificação sobre o crisântemo, se passou a tentar utilizar adulticidas, inseticidas à base de piretro, no interior das casas. A primeira aplicação feita com sucesso foi em Freetown, na África do Sul, por Park Ross. Depois, em 1934 ou 1935, na Índia, Russell o utilizou com proveito em campanhas contra um anofelino chamado Anapheles culicifacies, que era o transmissor principal na área trabalhada.
Nessa época, surge então em nosso país um problema muito importante, que vai pôr à prova os métodos de controle de malária, métodos esses que terão repercussão internacional: a malária transmitida pelo Anopheles gambiae, no Brasil. Como vocês devem saber, Adolpho Lutz, em 1928, esteve no Rio Grande do Norte estudando insetos e emitiu a hipótese da importação de algum mosquito exógeno, inclusive da África para o Brasil. Era um homem de cultura parasitológica muito grande, foi talvez o maior parasitólogo que nós tivemos no Brasil, um indivíduo que trabalhou em insetos, em vermes, em protozoários; uma contribuição fantástica, a do Lutz. Pois bem, essa hipótese da importação se confirmou dois anos depois, quando um americano que trabalhava no serviço de febre amarela — Raymond Shannon — descobriu, em Natal, um foco com milhares de larvas de Anopheles gambiae no ancoradouro de barcos franceses que vinham de Dacar para o Brasil. Naturalmente, chamou a atenção (ele trabalhava em febre amarela) do serviço dele e também das autoridades brasileiras a respeito desse aspecto inteiramente inesperado, a existência de um mosquito de um outro continente, de uma outra região geográfica — principalmente sendo um mosquito que era, e é ainda hoje, considerado o principal transmissor de malária do mundo inteiro.
Pouco depois disso começou um surto de malária em Natal, onde em um bairro de 12 mil pessoas houve 10 mil casos, mas o controle foi feito com um certo sucesso, utilizando os métodos usuais de combate aos criadouros. Depois esse mosquito foi se expandindo durante alguns anos, subindo pela costa, mas sem provocar grandes surtos epidêmicos, até 5que, em 1938, causou, no vale do Jaguaribe, no Ceará, talvez a maior epidemia de malária já ocorrida em nosso continente. Nessa época foi feito um grande esforço para controlar a malária. Estava-se perto da Segunda Guerra Mundial, e os americanos ficaram com medo de que esse anofelino atingisse o Canal do Panamá; resolveram então dar verbas grandes para tentar evitar que isso acontecesse. Com isso, fez-se um acordo de cooperação entre a Fundação Rockefeller e o Governo Brasileiro para a fundação de um Serviço de Malária do Nordeste, destinado apenas ao combate ao Anopheles gambiae; e esse serviço foi realmente muito eficiente, porque em dois anos erradicou esse anofelino do nosso país.
A erradicação foi feita exclusivamente por medidas que precederam o DDT, não havia DDT naquela época — entre 1938 e 1940; essas medidas foram: primeiro, uma disciplina férrea no Serviço; depois, a simplicidade dos processos: as medidas escolhidas eram simples, mas que só foram simples porque se aprendeu os hábitos do transmissor na área. Foram feitos estudos que levaram a descobertas importantes: primeiro, que esta cepa do Anopheles gambiae introduzida no Brasil era doméstica, 100% doméstica, e muito antropófila. Eu trabalhei durante toda essa campanha e, fazendo-se pesquisas de laboratório e de campo relativas a esse assunto, verificou-se que não se capturava nunca o Anopheles gambiae fora das casas, mesmo com isca humana; nunca se capturava também em nenhum animal — cavalo, burro, boi — só no homem, e no homem dentro de casa. Essa domesticidade e essa antropofilia eram de tal ordem que na região costeira do Ceará e do Rio Grande do Norte havia áreas onde os moradores das regiões praianas dormiam na praia, fora de casa, porque não podiam fazê-lo dentro das casas, onde era possível capturar-se 1.500, 2.000, 2.500 gambiae numa só noite. Esse mosquito era, assim, exclusivamente doméstico, fato que foi muito favorável ao seu controle porque, sendo exclusivamente doméstico, a utilização de um inseticida dentro das casas pôde reduzir em muito a densidade da população desse transmissor. Outro fato igualmente importante que foi descoberto na ocasião diz respeito aos criadouros e mostra a importância do conhecimento da ecologia do mosquito na transmissão de uma doença: verificou-se que o Anopheles gambiae não criava em depósitos sombreados, não criava em mata, mas exclusivamente em pequenas coleções de água limpa e bem ensolorada. Eram os únicos criadouros importantes. Isso facilitou tremendamente a luta antilarvária, porque foi muito fácil localizar criadouro por criadouro de gambiae naquela área do Nordeste onde ele havia se expandido.
O Serviço de Malária do Nordeste chegou a ter quatro mil pessoas trabalhando para evitar a expansão desse mosquito. Nesse trabalho, a área foi dividida de tal maneira que cada guarda era responsável por uma légua quadrada de solo; cada seis guardas tinham um guarda-chefe que era responsável por eles; cada seis guardas-chefes tinham um supervisor; esses supervisores eram fiscalizados por médicos. A área foi toda bem dividida, de maneira que numa certa época se conhecia, não vou dizer todos, mas praticamente todos os criadouros do gambiae. Esses criadouros eram tratados com verde Paris semanalmente, e as casas eram aspergidas por dentro com piretro (era o Flit), mensalmente. Aplicação de Flit, intradomiciliária, mensal, e de verde Paris, semanal, em todos os criadouros: esses foram os fatores que resultaram na eliminação desse mosquito, coisa que ninguém pensava que pudesse ocorrer.
6O enorme sucesso da campanha antigambiae no Brasil teve repercussão internacional, porque, pela primeira vez, se eliminou de uma região zoogeográfica um transmissor de doença procedente de outra região zoogeográfica. Agora, para dar uma idéia, para justificar a opinião de que para o controle de malária é indispensável que a gente tenha verbas suficientes, o exemplo do Serviço de Malária do Nordeste pode ser mencionado: era uma área pequena, com quatro mil pessoas trabalhando só para controlar aquele mosquito, cujos hábitos se conheciam bastante bem. Aliás, logo se verificou que ele não ia poder chegar ao Canal do Panamá, já que não poderia atravessar a região amazônica, por ser um mosquito de áreas ensolaradas. Isso trouxe um certo alívio aos que estavam temerosos de que ele chegasse até o Canal do Panamá.
Nessa época foi, entretanto, também essencial para o controle da malária a tremenda disciplina que havia no Serviço. Alguns exemplos: nos laboratórios havia pessoas encarregadas de examinar lâminas de sangue; grupos de dez, cada uma com seu microscópio, o chefe do grupo ligava o relógio despertador às oito horas da manhã, para iniciar o trabalho; durante dez minutos cada um examinava uma lâmina, após dez minutos o relógio tocava, eles passavam para outra lâmina; quando completava 50 minutos, paravam e tinham dez minutos de descanso; às nove horas recomeçavam, dez minutos para cada lâmina, dez minutos de intervalo em cada hora e isso o dia inteiro. Mas não era só isso; outro fato é que nós que controlávamos o laboratório todos os dias tínhamos que pôr lâminas positivas no meio das outras para verificar se os examinadores estavam atentos; e, se ocorria qualquer engano, a pessoa que o cometia perdia o dia de salário. Isso que acontecia com as lâminas de sangue, passava-se também com as larvas e com os adultos dos mosquitos. No exame de larvas, cada equipe compunha-se de duas pessoas: uma auxiliar que montava as larvas nas lâminas, cinco larvas por lâmina, e uma que as examinava e escrevia os resultados — 7isto é, se havia aparecido um gambiae no meio. Havia uma certa porfia entre o pessoal que examinava os mosquitos e as larvas, porque no fim do dia cada um escrevia num quadro-negro o seu nome e o número de exemplares que tinha identificado. E cada um procurava identificar o maior número, para ficar com prestígio dentro do serviço. Mas acontece também que em alguns tubinhos com as larvas, e nas caixinhas com adultos nós éramos obrigados a pôr, de vez em quando, um exemplar de gambiae para testar a atenção dos técnicos. E, se o rapaz ou a moça que identificava aquele material se enganava, perdia também o dia de salário. No segundo engano, eram três dias de salário perdido, então ninguém podia se enganar. Portanto, esse rigor tremendo, algo desumano, foi também um dos fatores do sucesso da campanha. Hoje seria praticamente impossível conseguir uma disciplina como a do tempo da campanha contra o Anopheles gambiae.
Só depois dessa campanha apareceu o DDT. A história do controle de malária depois do DDT já é conhecida por todos. Foi uma revolução extraordinária em relação ao controle de doenças transmitidas por insetos e que deu uma esperança, aliás exagerada, quanto a esse controle — a ponto de se ter pensado que a profissão de entomologista-médico ia desaparecer. Ninguém tinha pensado no aparecimento da resistência dos insetos aos inseticidas, que fez com que surgissem uma porção de problemas ligados ao controle da malária. A gente sabe que no início essas campanhas foram extremamente eficientes. Na Índia, em dez anos, a partir de 1951, a malária reduziu-se mais de mil vezes: em 1951 havia de 75 a 100 milhões de casos de malária anuais, e em 1961 eram 50 mil. Mas, a partir de 1961, a tendência muda: em 65 já havia subido um pouquinho, até que em 1977 a malária tinha passado de 50 mil casos para 50 milhões.
Portanto, não é de admirar o que está acontecendo agora no Brasil, porque na Índia esse aparente fracasso (que depois foi contornado) deveu-se a fatores semelhantes: surtos de migração desordenada, aquela extrema confiança na simplicidade dos métodos de controle, o relaxamento da fiscalização, porque o pessoal treinado já foi ficando mais velho, mais cansado, menos entusiasmado. No Ceilão e em outros países também houve a mesma coisa, esses grandes insucessos transitórios. Em muitos lugares isso se deveu à resistência dos transmissores aos inseticidas. Essa resistência então tem que ser contornada. Como? Procurando outros métodos alternativos: a volta a métodos que eram usados antes dos modernos inseticidas. Quando eu tinha muito contato com o pessoal que fazia o controle de malária no Brasil, minha impressão era de que se tinha medo de usar métodos que não fossem esses recomendados pela OMS — que são apenas a aplicação de DDT nas casas e o uso sistemático de drogas. Bom, esse é um método geral, que pode dar resultados na enorme maioria dos casos, mas, como existem situações muito específicas em cada área, não se pode ser muito rígido em relação a isso. Acontece que muitos dos administradores das campanhas antimaláricas têm uma impressão falsa de que só os lá de fora sabem das coisas, e podem, por isso, ditar regras para o nosso trabalho; o pessoal local fica assim com um pouco de medo de utilizar métodos que pareçam antiquados. Em muitos lugares se poderia controlar a malária utilizando métodos que foram empregados com sucesso no princípio do século, mas em geral se tem medo de parecer atrasado e então se quer usar sempre os métodos mais modernos. Mas nem sempre o que é moderno realmente substitui o que não é moderno.8
Então, como disse o Pedro Tauil, a Sucam está interessada em tentar uma porção de alternativas nas atuais campanhas de controle de malária, coisa que é muito justa e que tem que ser feita sem o menor preconceito, sem nenhum, medo de se parecer antiquado. Onde for prático fazer aterro, onde for prático fazer drenagem, é isso o que tem que ser feito. No passado, tivemos alguns exemplos disso em nosso próprio país. Na década de 20 e 30 se controlou a malária na Baixada Fluminense, que era tremendamente malarígena, e esse controle foi feito com bastante eficiência só com serviços de engenharia sanitária: drenagem, retificação de valas, aterros. Quando se fez a represa do Ribeirão das Lajes, por exemplo, se imaginava que haveria grandes surtos de malária nas redondezas, porque o Anopheles darlingi estava lá por perto e as grandes represas são tradicionalmente focos importantes desse mosquito, que é importante transmissor do paludismo. Não ocorreram os surtos previstos. Por que? Porque o encarregado da parte médica do sistema da Light, que construiu a represa, era um indivíduo que resolveu estudar os criadouros do mosquito; verificou que o darlingi não cria em lugares limpos, nas margens de represas livres de vegetação. Então o trabalho dele era limpar as margens do Ribeirão das Lajes, limpeza que foi feita permanentemente. Não houve epidemia de malária em função dessa represa. São exemplos que monstram que a gente pode controlar a malária, desde que haja dinheiro suficiente, porque realmente esse é um fator indispensável. No caso do Ribeirão das Lajes havia suficiente dinheiro, a Light estava altamente interessada em dar todos os recursos econômicos necessários para evitar a malária ao redor da represa, e isso foi conseguido só com a limpeza das margens da mesma. O fato é que não se deve ter preconceito em relação a medidas de controle da malária, há que utilizar os métodos que tenham dado resultado, mesmo que isso tenha sido há 50, 80 anos atrás.
Com o advento do DDT, naturalmente, o combate à malária foi muito simplificado e mesmo na Amazônia houve campanhas bem sucedidas, numa época em que não havia os atuais problemas de imigração maciça e incontrolada e quando as verbas eram adequadas.
Lá no Pará, por exemplo, na segunda metade da década de 1940, a Divisão de Malária do SESP efetuou uma campanha bastante eficiente. Na verdade, foi na cidade de Breves, no Pará, em 1945, que o DDT foi pela primeira vez aplicado sistematicamente no controle de malária na Amazônia. Faziam-se então quatro aplicações anuais de DDT nas casas, e realmente se acabou com a malária na cidade de Breves. Logo depois se passou a fazer o controle nas cidades de Belém e Manaus, e depois em Macapá, Oiapoque e Mazagão, no então território do Amapá, e mais tarde em muitas cidades do Pará, Amazonas e Acre, onde se baixou extraordinariamente a incidência de malária. O controle foi possível porque havia suficiente dinheiro para aplicar regularmente inseticida, e um batalhão grande de guardas bem pagos — como também haviam sido, aliás, os guardas do Serviço de Malária do Nordeste, da campanha antigambiae, que ganhavam mais do que o prefeito de Aracati, por exemplo. É importante ter gente bem paga, que não queira perder o emprego.
Portanto, para o controle da malária na Amazônia, embora sejam desejáveis estudos visando a conhecer melhor os atuais hábitos dos principais vetores após as profundas alterações ambientais criadas recentemente pelo homem, ou procurar novos transmissores, os dois fatores que hoje me parecem merecer mais ênfase são uma racionalização da imigração e verbas adequadas. Isso enquanto não se dispuser da tão ansiosamente esperada vacina.
PAULO SABROZA:9
O número de casos registrados de malária no Brasil vem mostrando uma tendência de crescimento exponencial no período de 1974 a 1983, com taxa média anual de 17%. Este aumento explosivo, como foi apresentado, ocorreu por conta da incidência na região amazônica, que representou 97% dos casos do país nos últimos três anos. Os restantes, em sua maior parte, são casos importados desta região ou secundários à introdução de indivíduos infectados procedentes da Amazônia para áreas receptivas onde a transmissão já fora interrompida.
A expansão da endemia na Amazônia e o risco de reintrodução de malária nas regiões onde ela já foi erradicada são dois problemas que têm causado crescente preocupação. A falência do programa na Amazônia, quando avaliado em relação à sua efetividade ou às metas a que se propôs, contrasta com o êxito no restante do país, onde — ao se realizarem as previsões de eliminação dos últimos focos no litoral sul e região Centro-Oeste — terá sido conseguida a erradicação da malária em uma das maiores áreas contínuas inter-tropicais.
A estratégia clássica utilizada para a erradicação nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul, que se mostrou tão eficaz, se baseou, fundamentalmente, na diminuição, até o esgotamento total, das fontes de infecção nas populações humanas e nos vetores, sem alterar a densidade destes e mantendo a receptividade das áreas. Com isso, há o risco de grandes epidemias — pois a maior parte da população não possui mais imunidade — se o parasita for reintroduzido e medidas imediatas de controle focal não se realizarem.
Desta forma, a interrupção da transmissão — obtida através de grandes recursos financeiros e esforço humano — corre risco de vir a perder-se quando, ao ocorrer a ocupação da fronteira agrícola da Amazônia, grandes contingentes populacionais, desiludidos e infectados, retomarem aos seus locais de origem ou se dirigirem a outros pólos de atração de mão-de-obra. Já agora a vigilância epidemiológica não tem conseguido impedir que a cada ano novos focos de malária voltem a ocorrer em áreas onde a borrifação com D.D.T. já foi suspensa, obrigando a esforços urgentes para interromper novamente a transmissão. Em 1983, 22 destes focos foram detectados.
A concentração de atenção e recursos na Amazônia, absolutamente justificável, pode resultar na dificuldade de manter o trabalho com a qualidade necessária nas áreas10 onde a erradicação já foi obtida, prejudicando o resultado de muitos anos de atividades. As perplexidades que o crescimento da endemia malárica na Amazônia tem trazido àqueles que atuam no programa decorrem principalmente das dificuldades em prever a "evolução do problema e da ausência de novas estratégias de intervenção que sejam alternativas para as realidades onde falharam os métodos tradicionais. Quanto às causas da tendência crescente da endemia, desde a metade da década passada já estava bem estabelecida a associação entre o modo de ocupação da Amazônia na atual conjuntura e o aumento da transmissão da malária.
Freqüentemente a baixa efetividade do programa tem sido atribuída ora a problemas culturais e biológicos, como a existência de casas desprotegidas e sem paredes onde se colocar o inseticida residual e à resistência do Plasmodium falciparum às quatro-aminoquinoloxinas, ora à migração. Não se pode "deixar de valorizar estas questões, mas é preciso considerar que a resistência biológica dos vetores ao D.D.T., que realmente inviabilizaria o programa atualmente proposto, nunca foi observada no Brasil. Dificuldades de acesso aos domicílios e inexistência de paredes complicam as operações de campo, podendo, em certas circunstâncias localizadas, inviabilizar as práticas tradicionais, obrigando à utilização de estratégias alternativas.
Mais importante para se avaliar as dificuldades do programa como um todo é observar as coberturas que vêm sendo obtidas e que seriam insuficientes para o controle destes problemas. Segundo os dados da SUCAM, em 1983 foram realizadas 14.647 borrifações domiciliares no Amazonas, divididas em dois ciclos, mas que correspondem apenas a coberturas de 77,9% e 56,5% em cada ciclo, em relação à meta programada. As coberturas em Rondônia, de 56,2% e 50,7%, mostram que nesta área de grande fluxo migratório a metade da população em risco ficou sem a proteção do inseticida no período de maior transmissão.
Em decorrência do grande número de indivíduos infectantes, portadores de gametócitos, e da taxa básica de reprodução da malária (uma das mais altas entre as doenças transmissíveis), a cobertura inadequada (e, principalmente, a falta de regularidade nas aplicações do inseticida) e a latência entre o início da doença e o tratamento são suficientes para explicar a permanência da transmissão e seu caráter explosivo, à medida que migrantes sem experiência imunológica e cultural com a malária aumentam a cada ano o contingente de suscetíveis.
Em relação à persistência de taxas elevadas de transmissão, a mobilidade populacional resultante do modelo de desenvolvimento econômico adotado na Amazônia é mais importante que a migração propriamente dita — a de indivíduos de áreas não endêmicas. As dificuldades de acesso ao trabalho e à terra, nunca concretizado de forma permanente, já que os pólos de desenvolvimento exigem apenas transitoriamente grandes contingentes de trabalhadores disponíveis, obrigam os indivíduos a se deslocar continuamente, impedindo sua fixação e, em conseqüência, investimentos na melhoria da habitação e no saneamento do meio.
Os fatores que impedem sua fixação são, portanto, responsáveis pelo processo gerador da malária, pelas dificuldades enfrentadas pela Sucam em utilizar com efetividade as medidas tradicionais e pela reintrodução da malária onde a sua transmissão já havia sido interrompida.
A persistência da transmissão em taxas elevadas leva à diminuição de idade onde ocorre a primeira infecção, entre aqueles nascidos na área. As crianças de menos de dois anos e os migrantes recém-chegados, com menos de dois anos de permanência nas áreas endêmicas, são grupos especialmente sujeitos a risco de morrer por malária, já que a primo-infecção por Plasmodium falciparum tem grande letalidade, quando o doente não é tratado oportuna e adequadamente. Na Amazônia esta espécie é responsável por aproximadamente metade dos casos de doença registrados e, com freqüência, mostra algum grau de resistência aos medicamentos disponíveis.
11Não se dispõe de nenhum dado confiável sobre mortalidade por malária na Amazônia, nem sobre a contribuição relativa da doença na mortalidade infantil ou na incapacidade do homem para o trabalho. Entretanto, mesmo com os dados de mortalidade atuais — muito subestimados por não incluírem áreas rurais onde a endemia prevalece e especialmente deficientes em relação à mortalidade em crianças de menos de cinco anos — vemos que em Rondônia, nos anos de 1979 e 1980, a malária foi a segunda causa mais freqüente de morte, precedida apenas pelas infecções intestinais mal definidas; foram registradas 347 mortes, correspondentes a 5,7% do total de óbitos.
Os dados disponíveis para estimar a magnitude do problema são aqueles que se considerava suficientes quando o objetivo era a erradicação da malária a curto prazo: o número de casos e os indicadores calculados a partir destes dados e da produtividade dos serviços eram suficientes para avaliar a evolução do programa, em termos de metas atingidas.
Sucede que recentemente se reconheceu a inviabilidade de erradicar a malária da Amazônia nas circunstâncias atuais; passou-se a trabalhar dentro de uma perspectiva de um programa de controle. Ora, programas de controle visam prioritariamente evitar a mortalidade, diminuir a morbidade e em seguida a transmissão. Por sua vez, a diminuição de mortalidade e de morbidade exige tratamento eficaz, oportuno, de fácil acesso e gratuito, que não pode ser oferecido por um programa vertical sem a participação da rede básica de serviços de saúde, que ainda tem baixa cobertura e operacionalidade na maior parte das áreas endêmicas.
Programas de controle exigem ainda aplicações diversificadas de medidas adequadas às diversas situações. Isto pressupõe pessoal especializado, com formação em epidemiologia e entomologia, com capacidade técnica adequada, e descentralização administrativa, de modo que possam ser tomadas decisões a nível regional e local relacionadas com prioridades e definição de estratégias.
12Décadas de aplicação rotineira de uma mesma metodologia buscando a erradicação e de uma política progressiva de aviltamento salarial do pessoal que trabalha em saúde e educação no setor público resultaram em que se pode afirmar não haver atualmente recursos humanos suficientes com preparação adequada; há menos ainda condições de recrutá-los e retê-los com os salários que são oferecidos, para trabalhar nas áreas endêmicas.
Coloca-se freqüentemente a esperança do controle da malária nos resultados de duas linhas de pesquisas: novas drogas antimaláricas — como a mefloquina — e a vacina.
As duas trariam contribuições importantes, mas limitadas: às novas drogas o Plasmodium falciparum tem respondido com o rápido desenvolvimento de resistência, e de nada adianta para as populações periféricas a disponibilidade de novos medicamentos se a estes os doentes não tiverem acesso quando necessitarem.
As vacinas, ao que sabemos hoje, deverão oferecer uma proteção limitada no tempo, sendo muito útil para a proteção de grupos de exposição transitória, como militares ou operários especializados de grandes obras, mas não parece viável a obtenção de altas coberturas na população geral, através de vacinações repetidas.
A reversão da atual tendência explosiva da malária na Amazônia e do risco de reinfestação de novas áreas está mais na dependência da fixação do homem à terra, de seu acesso a serviços de saúde eficazes e que disponham de medicamentos adequados, da garantia de recursos humanos e materiais suficientes para a borrifação periódica dos domicílios com a cobertura necessária das áreas prioritárias, e da participação das comunidades organizadas nas decisões relativas às suas questões de saúde.
CLÁUDIO RIBEIRO:
13Quando estudamos a imunologia da malária, encontramos um fator comum a toda imunologia parasitária: uma enorme complexidade antigênica a nível do parasita, o que acarreta, por parte do hospedeiro, uma resposta imune que poderia ser classificada em 3 tipos — resposta inespecífica, resposta específica não protetora e resposta específica protetora. Evidentemente é a terceira resposta que nós buscamos nos estudos que visam a obtenção de uma vacina.
14Os médicos clínicos envolvidos no tratamento de pacientes com malária estão habituados a receber proteinogramas mostrando elevações importantes da fração gamaglobulina no soro desses pacientes. Esse aumento deve-se a uma hiperprodução de IgG e de IgM, e hoje sabe-se que somente uma percentagem reduzida destas imunoglobulinas (Ig) é específica de antígenos (Ag) parasitários. A maior parte parece não estar relacionada com a estrutura antigênica do parasita e pode conter anticorpos (Ac) dirigidos contra Ag de outras espécies (heteroanticorpos — como, por exemplo, hemácias de carneiro) ou do próprio indivíduo auto-anticorpos — como, por exemplo, Ags nucleares ou Ags da própria Ig. A aparição destes Acs parece estar relacionada com a presença de substâncias parasitárias dotadas de propriedades de ativação policlonal de linfócitos-B (APB), ou seja, substâncias mitogênicas capazes de induzir simultaneamente e de maneira inespecífica a proliferação e a ativação de vários clones de linfócitos-B levando-os à síntese de Acs de diferentes especificidades.
Além disso, a APB parece estar envolvida não só na hipergamaglobulinemia e na produção de Ac heterófilos, mas também na produção de alguns auto-Ac que poderiam ter um papel patogênico, como, por exemplo, os auto-Ac anti-eritrocitários e anti-linfocitários que podem estar envolvidos respectivamente na anemia e na imunossupressão que acompanham a doença. A APB pode também levar de maneira direta, por mecanismos ainda não bem esclarecidos, à imunossupressão. Assim, podemos pensar que a identificação destas substâncias mitogênicas poderia permitir o desenvolvimento de processos de imunização que impediriam o desenvolvimento desses fenômenos imunopatológicos auto-agressivos (como a auto-imunidade anti-eritrocitária e a anemia) e mesmo prejudiciais ao controle da doença (como a imunossupressão), quando estivermos, no futuro, vacinando indivíduos contra a malária.
Cabe talvez citar aqui também a enorme potencialidade que representa o desenvolvimento de processos de imunização levando à formação de anticorpos anti-idiotipo para o controle de respostas imunes nefastas ao organismo. Os Acs anti-idiotipo reconhecem especificamente determinantes antigênicos da imunoglobulina, expressos, na grande maioria das vezes, no sítio de ligação do Ac com o Ag correspondente. Eles reagem, portanto, somente com os Acs específicos desse Ag e podem, quando injetados em um indivíduo, aumentar ou suprimir a produção deste Ac. Esse exemplo de modulação específica da resposta imune talvez tivesse emprego — no caso da malária e em determinadas condições — no controle das respostas auto-imunes anti-eritrocitária e antilinfocitária.
Entretanto, estudar a imunopatologia da malária tem também interesse a nível de pesquisa fundamental. Assim, a existência destes mitógenos plasmodiais, assim como a dos fenômenos de APB e de auto-imunidade em indivíduos infectados, ilustram o interesse da malária como modelo de estudo de doenças onde esses fenômenos se associam a um verdadeiro estado auto-imune, sem que seja possível determinar de maneira inequívoca a participação e a relevância de cada mecanismo imunopatológico envolvido. De fato, nessas doenças ditas auto-imunes, além de prováveis fatores ambientais, um determinismo genético importante parece estar implicado no seu desenvolvimento.
Essa situação contrasta, evidentemente, com aquela observada em indivíduos sem nenhuma predisposição genética para o desenvolvimento dessas doenças e que têm repentinamente o seu sistema imune exposto a agentes patógenos (como o Plasmodium) dotados de propriedades de ativação policlonal de linfócitos-B. Nesses indivíduos os fatores causais exógenos, não sendo associados a componentes endógenos (genéticos), podem ter a sua relevância no processo de ativação de células-B estudadas de maneira mais rigorosa.
15Eu gostaria de dizer algumas palavras sobre essa resposta imune que, embora não seja suficiente para proteger o organismo, pode ser detectada por técnicas imunológicas clássicas e permitir a triagem de indivíduos expostos à infecção. Por exemplo, a detecção de Acs séricos ditos marcadores (ou "testemunhas") por técnicas soro-imunológicas simples, como a imunofluorescência indireta, permite a identificação de casos de malária que dificilmente seriam detectados por exame parasitológico direto como a gota espessa e o esfregaço. A sorologia encontra sua aplicação maior em áreas endêmicas, onde indivíduos parcialmente imunes apresentam raramente parásitos detectáveis por exame direto, ou na detecção de casos de infecção por Plasmodium a recrudescencia como o P. vivax, já que o indivíduo totalmente assintomático pode ser portador do parasita. A importância da detecção e do tratamento precoce destes casos foi muito bem ilustrada pelo exemplo dado pelo Dr. Tauil, da erradicação da malária em uma área de Santa Catarina, após tratamento de todos os indivíduos com sorologia positiva, o que justificou o "pecado por excesso" ao qual ele se referiu.
Além disso, devemos ter em mente a possibilidade de criação de microfocos de transmissão em áreas não endêmicas, e sobretudo a enorme ameaça que esses indivíduos representam em termos de malária pós-transfusional. Em países industrializados, onde a imigração de africanos é grande, esse é um problema como o qual as autoridades sanitárias estão constantemente preocupadas. Um exemplo disso é a tentativa de padronização de técnicas e produção de kits para o diagnóstico da malária pela equipe do Professor Charles Salmon, no Centro Nacional de Transfusão Sangüínea, na França.
Uma limitação da soro-imunologia clássica é que é necessário algum tempo para haver uma resposta por parte do hospedeiro contra o parasito, para que esses Acs testemunhas sejam encontrados no soro. Mas uma variante das técnicas usuais procura evidenciar antígenos solúveis que seriam detectados com auxílio de Acs específicos do Plasmodium. Resultados recentes obtidos pela equipe da Dra. Ruth Nussenzweig sugerem que em um futuro próximo se poderá detectar, por técnicas imunoradiométricas e com auxílio de Ac monoclonais, estágio e espécie (mas não cepa) específicos, a infecção com parasitemia não detectável por exame direto no sangue periférico.
Um outro passo importante na soro-imunologia foi dado pela mesma equipe que, durante pesquisas que visavam a caracterização de antígenos do estágio esporozoíto do Plasmodium com propriedades vacinantes, identificou e sintetizou recentemente um peptídeo envolvido no processo de adesão do esporozoíto ao hepatócito. Esse peptídeo sintético é reconhecido por Ac monoclonais que protegem passivamente animais de laboratório e inibem a infectividade de esporozoítos in vitro. Portanto pode-se prever que a utilização de ensaios imuno-enzimáticos ou imunoradiométricos sensíveis, empregando o peptídeo sintético para a pesquisa dos Acs correspondentes no soro, permitirá a avaliação do status imune de um indivíduo através de um teste imunológico, recurso com o qual não contamos até o presente momento, como já foi dito anteriormente.
16A vantagem que representará o emprego da imunoprofilaxia para controle da malária já foi citada aqui; entretanto, quando falamos em vacina contra malária, a primeira pergunta que se faz é: será possível elaborar uma vacina eficaz contra uma doença que, em condições naturais, não induz uma imunidade protetora completa e duradoura?
Nós sabemos de fato, já há algum tempo, que os indivíduos nativos de áreas endêmicas desenvolvem progressivamente um grau de imunidade parcial (dita premunição) e, uma vez ultrapassada a idade crítica de 5-6 anos, estão protegidos contra formas graves e letais da malária. Essa imunidade de aquisição lenta e progressiva é incompleta e bastante lábil. Assim, um indivíduo adulto que tenha vivido durante toda a sua vida em uma área endêmica, exposto crónicamente ao risco da infecção, pode, ao se deslocar para uma região não endêmica por um período superior a um ano, perder o seu estado de "pré-imunidade", contrair a doença e vir a falecer.
As razões desta imunidade parcial e lábil são várias e fogem ao assunto da minha intervenção, mas vale lembrar a complexidade antigênica do parasito e a variabilidade das respostas imunes induzidas por esses múltiplos antígenos. Algumas dessas respostas são positivas para o hospedeiro e outras negativas, ou seja, protegem o parasito.
Assim, talvez possamos prever que com a caracterização e o isolamento de um ou mais antígenos que induzam uma resposta imune positiva e eficaz (nefasta para o parasito) obtenhamos mais facilmente resultados positivos do que a própria natureza, que trabalha com o "pool" de vários antígenos que representa o parasito. Desta forma, a resposta à pergunta que formulamos anteriormente talvez seja sim.
Evidentemente, os antígenos mais interessantes em termos de vacina são aqueles presentes nos estágios de desenvolvimento do parasito que são mais expostos ao sistema imune, ou seja, as formas "invasivas" do parasito: o esporozoíto, que é a forma infectante inoculada pelo mosquito e que vai parasitar o hepatócito; o merozoíto, forma infectante liberada pelos esquizontes hepáticos e eritroeitários que vai parasitar as hemácias; e os gametócitos, que correspondem aos estágios sexuados infectantes para o mosquito.
Alguns grupos, como o do Dr. Hildebrando Pereira da Silva, do Instituto Pasteur, de Paris, e o do Dr. Luc Perrin, em Genebra, estão trabalhando com as formas intra-eritrocitárias (merozoítos) e têm alguns resultados bastante interessantes e promissores. Outros estão empenhados em produzir uma vacina contra as formas sexuadas que, na verdade, seria uma vacina que protege o mosquito, mas isso não tem a menor importância, pois, se interrompermos o ciclo sexuado no mosquito, estaremos interrompendo também a transmissão da doença. Mas o estágio esporozoíto é aquele que tem sido alvo de estudos mais aprofundados pela equipe do New York University Medical Center, chefiada pelos Professores Ruth e Vitor Nussenzweig, que identificaram, com a ajuda de Ac monoclonais, caracterizando e sintetizando (para algumas espécies plasmodiais) antígenos da superfície do esporozoíto de 5 espécies plasmodiais diferentes. Esses Ags apresentam comunidades estruturais antigênicas e funcionais e estão envolvidos na resposta específica protetora.
Durante algum tempo acreditou-se que os esporozoítos não eram capazes de induzir uma resposta imune eficaz, uma vez que a sua passagem na circulação ocorria por um período de tempo muito curto (30 minutos). O interesse na imunidade anti-esporozoítica surgiu quando se observou que era possível vacinar, no caso da malária aviária, com esporozoítos atenuados por luz UV ou formol, o que se confirmou na malária de roedores usando-se esporozoítos irradiados. Vandenberg mostrou que 2 a 3 inóculos eram capazes de proteger por dois meses 90% dos camundongos da infecção por P. berghei, normalmente letal. Vandenberg demonstrou também que, para proteção, era necessário que os esporozoítos fossem obtidos na glândula salivar no 17o dia de desenvolvimento. Os Ags envolvidos na proteção estavam ausentes do oocisto jovem, mas presentes nos oocistos maduros e nos esquizontes hepáticos, nas 30 primeiras horas de desenvolvimento. Um fato curioso: o uso de adjuvantes não era necessário e, pelo contrário, não melhorava ou até diminuía a imunogenicidade, o que também acontecia se esporozoítos mortos eram utilizados, o que sugeria a necessidade de que o esporozoíto entrasse no hepatócito. Isso foi confimiado pelos trabalhos de Spitalny, em 1970, mostrando que esporozoítos irradiados causam realmente um granuloma hepático.
O soro dos animais hiperimunes inibia a infectividade do esporozoíto e causava um depósito de material na parte posterior do parasito (reação dita "circum sporozoite precipitation" — CSP), quando incubado com este estágio do Plasmodium.
Em 1974, 1975, foram feitas nos Estados Unidos algumas experiências no homem, talvez um pouco precoces, de exposição de voluntários a mosquitos irradiados infectados por P. vivax ou P. falciparum; três dos cinco indivíduos submetidos a esse processo de imunização apresentaram proteção ao desafio, que durou de três a seis meses. Mais tarde observou-se que os anticorpos anti-esporozoítos estavam presentes em 90% dos indivíduos em áreas endêmicas, embora não exista uma correlação invariável entre presença destes Acs e proteção na malária experimental do roedor.
Entretanto, os estudos realizados com esporozoítos irradiados obtidos a partir de dissecção individual de mosquitos levantavam o problema técnico de obtenção de material de grande quantidade para produção de vacinas. Eles foram porém extremamente úteis, na medida em que estimularam os cientistas a desenvolverem programas de pesquisa envolvidos na identificação, caracterização e purificação de Ags de membrana protetores, para sua posterior obtenção por síntese química ou engenharia genética.17
Um primeiro trabalho nesse sentido foi publicado na revista Science, em 1981, por Nobuka Yoshida, uma brasileira que trabalhava na época com a Dra. Ruth Nussenzweig, em Nova York. Foi o primeiro de uma série de trabalhos que tiveram como conseqüência a identificação de uma "família" de proteínas (ditas "proteínas CSP") da membrana do esporozoíto, que tem praticamente as mesmas propriedades, e que colocaram a equipe dos Drs. Ruth e Vitor Nussenzweig na lista dos fortes candidatos à descoberta de uma vacina contra a malária humana.
Vejamos como isso aconteceu:
Imunizando camundongos com esporozoítos irradiados, Nobuka Yoshida obteve células esplênicas que, fusionadas com uma linhagem de plasmocitomas, deram origem a um hibridoma secretante de um Ac monoclonal (AcMo) que reagia com Ags de superfície do esporozoíto de P. berghei, dando a reação de CSP. Esses Acs, quando incubados in vitro com os esporozoítos, aboliam a sua infectividade e, mais ainda, eram capazes de impedir a infecção, quando passivamente transferidos em doses de 50 a 300 µg a animais não imunes. Esses dados sugeriam que as experiências realizadas anteriormente, demonstrando a incapacidade de soro imune de proteger passivamente animais não imunes, poderiam ser explicadas pela insuficiência de Acs de alta afinidade nestes soros. Estudos bioquímicos mostraram, posteriormente, que esses Acs reconheciam uma banda única de precipitação em eletroforese de gel de poliacrilamida que se comportava como peptídeo de peso molecular 44.000. Esse antígeno foi, por isso, chamado de Pb-44 (Pb de Plasmodium berghei) e é o primeiro da família de proteínas CSP. Ele está presente em toda superfície de esporozoítos obtidos a partir das glândulas salivares de mosquito; em "placas", nos esporozoítos de oocistos maduros; igualmente presentes em formas hepáticas jovens e ausentes destas formas, após 30 horas de desenvolvimento.
O Ag era espécie e estágio específico, ou seja, o AcMo correspondente não reagiu nem com esporozoítos de outras espécies plasmodiais, nem com outros estágios de desenvolvimento do P. berghei.
Na prática, embora outros Ags do interior do esporozoíto possam apresentar reações cruzadas com formas eritrocitárias, os Ags da membrana do esporozoíto não induzem proteção cruzada contra formas eritrocitárias; uma exceção a esta regra corresponde a um trabalho recentemente publicado na revista Nature, mostrando que um de vários AcMo anti-esporozoítos testados reagia com formas eritrocitárias.
Enfim, o Pb-44 é um componente maior da superfície do esporozoíto e Ags dessa família de proteínas CSP já foram identificados em 5 espécies plasmodiais. Em todos os casos existem enormes comunidades estruturais antigênicas e funcionais. O fragmento Fab monovalente desses AcsMo também inibe a adesão e a penetração de esporozoítos em hepatócitos in vitro, indicando que o epitopo reconhecido por esses Acs coincide ou está intimamente relacionado com as áreas da molécula de proteína CSP envolvida na interação do parasita com a célula do hospedeiro.
Esses dados indicam que as proteínas CSP são muito imunogênicas, e mostrou-se, por ensaios de competição, que um único epitopo da molécula parece concentrar a maior parte da sua atividade imunogênica; este epitopo, reconhecido por todos os AcMo específicos da proteína CSP, está envolvido na adesão e penetração de esporozoíto no hepatócito. Para se ter uma idéia de até que ponto esse epitoco concentra a imunogenicidade do esporozoíto, basta dizer que a pré-incubação do esporozoíto com um AcMo dirigido contra este epitopo inibe 70% a 90% da fixação de Ac policlonais de um soro hiperimune na superfície do esporozoíto!!
A próxima surpresa veio com a constatação da expressão polivalente desse epitopo na molécula; pode-se de fato mostrar por imunoradiometria que monômeros de proteína CSP ligam simultaneamente duas ou mais moléculas do mesmo AcMo. A seqüência de nucleotídeos revelou na proteína CSP de P. Knowlesi a existência de 12 repetições de 12 aminoácidos e a síntese da seqüência de 12 aa revelou que ela era capaz de inibir a reação do AcMo com a proteína CSP. O mesmo fenômeno foi observado com a proteína CSP do P. falciparum, onde o seqüenciamento de nucleotídeos revelou aproximadamente 30 repetições de 4 aa, dos quais só 3 eram diferentes.
Essa multiplicidade de expressão de um epitopo na molécula cobrindo a superfície do esporozoíto seria responsável pela sua grande imunogenicidade. De fato, todos os AcMo produzidos no N.Y.U.M.C. até o presente momento são dirigidos contra este epitopo único. Além disso, esses AcMo que reagem com o epitopo repetitivo neutralizam a infectividade do esporozoíto in vitro.
Um fato interessante, e que reflete a alta especificidade desse epitopo para o estágio esporozoíto da espécie Plasmodium, é que essa seqüência de nucleotídeos parece ser extremamente infreqüente, não tendo sido observada nenhuma homologia com outros peptídeos já catalogados.
A expressão múltipla desse epitopo na proteína CSP levanta o problema da conservação de uma estrutura repetitiva dentro de uma proteína. Três hipóteses poderiam ser consideradas. A primeira admite que essa repetição seria necessária para manutenção da estrutura da proteína. A segunda postula que essa seqüência teria que ser mantida e repetida, de maneira a assegurar o desempenho de uma função vital, como, por exemplo, na interação inicial com um rereptor no hepatócito do hospedeiro. A terceira hipótese levantada pelo Prof. Vitor Nussenzweig é que a expressão repetitiva desse epitopo na proteína CSP e na membrana do esporozoíto serviria para aumentar a imunogenicidade deste. Embora aparentemente paradoxal, essa hipótese é bastante tentadora, porque, de fato, uma vez dentro do hospedeiro, o esporozoíto entraria rapidamente no hepatócito e, no final de algumas horas, deixaria de expressar esses antígenos, escapando da eficiente resposta imune que ele mesmo teria suscitado e que destruiria novos esporozoítos que tentassem penetrar no organismo depois dele. Desta forma o hospedeiro estaria protegido de uma infecção muito grande que acarretaria a sua morte e conseqüentemente a do parasito.
Esses resultados bastante promissores em termos de imunoprofilaxia indicam que a vacina anti-esporozoítos será muito provavelmente uma realidade, em um futuro não muito distante; entretanto, alguns problemas inerentes a uma vacina anti-esporozoítos terão que ser resolvidos antes que essa vacina mostre-se viável para o uso no homem.
É preciso que testes em homens demonstrem a sua eficácia e a ausência de efeitos colaterais como a indução de respostas imunes nefastas para o organismo, como a auto-imunidade e a formação e deposição de complexos imunes nos tecidos. Esse ponto é realmente importante, porque, trabalhando com os AcMo que desenvolvemos em 1982 em colaboração com o Dr. Jorge Kalil, (por ocasião de um projeto comum aos Departamentos de Parasitologia Médica do Hospital Pitié-Salpétrière e de Imunologia de Transplantes do Hospital St. Louis, em Paris), nós pudemos observar que, de oito AcMo específicos de formas sangüíneas de P. falciparum, dois davam reação positiva por imunofluorescência com antígenos tissulares de mamíferos.
Um outro problema a ser resolvido é o da imunogenicidade do peptídeo sintético e o da eventual necessidade do uso de adjuvantes sem toxicidade para o homem.
Um obstáculo também a ser transposto concerne à imunossupressão que podem apresentar indivíduos expostos cronicamente à infecção palustre. Orjih e Nussenzweig demonstraram, na malária experimental do roedor, que animais infectados com formas eritrocitárias e vacinados com esporozoítos irradiados apresentavam uma resposta imune diminuída e eram menos bem protegidos contra o desafio com esporozoítos vivos do que controles normais imunizados da mesma forma.
Por outro lado, a especificidade de estágio dos Ags presentes na superfície dos esporozoítos, e a ausência de proteção cruzada contra formas eritrocitárias evoca o problema da malária pós-transfusional contra a qual os indivíduos vacinados com a vacina anti-esporozoítica não estariam absolutamente protegidos. Esses fatos demonstram a provável necessidade de associações com vacinas dirigidas contra outros estágios do Plasmodium (anti-merozoítos, por exemplo).
18Durante os trabalhos de identificação de Ags espécie específicos da superfície do esporozoíto, Pedro Potocnjak e Fidel Zavala desenvolveram no N.Y.U.M.C. testes imunoradiométricos muito sensíveis e específicos, capazes de detectar a presença de esporozoítos mesmo em pequenas quantidades (até 100 esporozoítos por inseto) no mosquito. Estes testes podem identificar a espécie infectante no hospedeiro invertebrado, o que não se pode fazer por critérios morfológicos. Além disso, o teste pode triar centenas de mosquitos em poucas horas, o que contrasta com a laboriosa tarefa que consiste em dissecar individualmente, sob a lupa, as glândulas salivares de mosquitos onde estão os esporozoítos infectantes. Dois tipos de testes são mais usados. O primeiro emprega um AcMo específico da proteína CSP de uma determinada espécie plasmodial acoplado a uma fase sólida (à parede de um tubo de ensaio de plástico ou de um poço de uma microplaca). Esse AcMo vai fixar a proteína CSP do esporozoíto, caso o mosquito esteja infectado e, após lavagens, usa-se o mesmo AcMo marcado com I125 para se revelar a fixação da proteína CSP na primeira camada do AcMo (fixado no plástico). Como nós já vimos, é a multiplicidade de expressão na proteína do epitopo reconhecido por este AcMo que permite que um só AcMo seja suficiente para se fazer o teste. O segundo tipo de teste usa o princípio da inibição da ligação do AcMo anti-idiotipo (marcado com I125) ao idiotipo (expresso no sítio de ligação do AcMo anti-esporozoíto) pelo próprio esporozoíto. Assim, se o mosquito estiver infectado, o esporozoíto vai se fixar no AcMo anti-esporozoíto fixado na fase sólida, inibindo a fixação do Ac anti-idiotipo (radiomarcado) no mesmo sítio, o que vai acarretar uma diminuição da radioatividade final na fase sólida.
O advento destes testes está modificando substancialmente o arsenal metodológico dos entomologistas para estudos epidemiológicos e atesta mais uma vez a importância da imunologia na abordagem dos diferentes aspectos da Medicina Tropical.
DEBATE
Dr. Tauil
— Bem, vou começar respondendo ao Dr. Paulo Sabroza na questão do pessoal. Tomemos por exemplo o entomologista. Realmente, se ele já é figura rara no mundo científico brasileiro, na Sucam é mais raro ainda, porque temos muita dificuldade de segurar essas pessoas em termos salariais. A mesma coisa se pode dizer com relação a todos os profissionais de nível superior. Por exemplo, em Rondônia nós tínhamos um diretor e um técnico; agora nós pudemos, através do Pólo-Noroeste, recrutar cinco elementos que foram recentemente treinados e que deverão estar trabalhando regularmente ainda esse ano. Mas o problema é geral no Serviço Público Federal; na verdade, não se tem elementos suficientes para garantir uma adesão total do pessoal ao programa, em virtude das vicissitudes que se passa para desempenhar um trabalho em tempo integral e dedicação exclusiva. Nós esperávamos um aumento pouco maior agora, mas só tivemos 65%, e isso está provavelmente inviabilizando a fixação de sanitaristas. Sanitarista está ficando uma categoria em extinção, a ponto de estarem entrando na Justiça agora, não aceitando a posição do DASP. Então esse problema de pessoal de nível superior talvez seja o mais grave atualmente na Sucam ou no Ministério, porque nós só podemos contratar através de expedientes, de tabelas temporárias que não dão nenhuma garantia para a pessoa. Para isso eu não vejo solução a curto prazo; nós temos uma proposta encaminhada ao Ministro, que se interessou e encaminhou ao DASP, aumentando o incentivo funcional, mas até agora as respostas são negativas. A situação é verdadeiramente angustiante.
Em relação à estratificação, nós compreendemos a estratificação não como uma coisa estática, principalmente na Amazônia. Então, nas áreas de prioridade 2, onde não se está dando cobertura por inseticida, nós estimulamos as investigações, o que chamamos, talvez inadequadamente, de aumento da vigilância. Essa vigilância é feita através dos guardas de epidemiologia, que mantêm a diretoria informada da situação epidemiológica da área. Quando se detecta qualquer anormalidade em termos de fluxos migratórios, em termos de aumento de incidência de malária, essa área entra na prioridade 1. Isso é o que nós temos feito. Como o Dr. Paulo Sabroza falou, essa estratificação tem razões epidemiológicas, mas tem também, fundamentalmente, razões de ordem econômica, porque não estamos em condições de fazer uma cobertura de toda área malárica da Amazônia. Os critérios usados nessa estratificação são baseados em vários fatores. Primeiro, no que a gente chama de receptividade, isto é, a presença do vetor em densidade suficiente para implantar a transmissão ou para desenvolver epidemias na área. Segundo, a vulnerabilidade da área, quer dizer, uma área que receba, ou vá receber, maior fluxo de pessoas passa a ser considerada com mais atenção. Terceiro, as condições de ordem ambiental, ecológicas, que mostram que aquela área poderá ser receptiva para malária. Existem alguns outros detalhes, mas isso é o fundamental.
Em relação ao problema da migração e mobilidade, isso na Amazônia é muito importante. O Dr. Agostinho Cruz Marques, da Sucam, tem um trabalho muito interessante, onde mostra onde foram detectados os casos de malária — quase dá para perceber a mobilidade dessas pessoas dentro e fora da Amazônia. O que nos parece é que principalmente o garimpeiro é bastante nômade nessa área, e muitos deles, já com muitas crises de malária, podem se transformar em portadores assintomáticos — e fica mais difícil ainda de ser detectado pelo serviço de vigilância. A migração é o principal. Não estou atribuindo à migração o papel de vilão da história — ela é conseqüência de uma série de situações sociais — mas a forma como o processo migratório se dá é que favorece essa transmissão e dificulta o controle.
Pergunta:
— Por que, se aumentou a incidência de malária, diminuiu o consumo de DDT?
Dr. Tauil
— Nós, no momento, estamos reduzindo o consumo de DDT no país. Por que? Porque estamos tirando extensas áreas de borrifação, localizadas na região, a curto prazo; áreas que hoje já estão na chamada fase de consolidação. A queda no consumo do DDT está em função da redução da área de atuação, porque antigamente em todo o Brasil se usava DDT. Hoje estamos gastando em média apenas duas mil toneladas por ano.
Mas há outro problema. No Brasil não se produz mais DDT. Quem produzia era a Hoescht; ela fabricava oito mil toneladas, nós consumíamos duas mil e o restante era utilizado na agricultura do cacau e da cana. A partir de 31 de dezembro de 1983, o DDT foi excluído do uso em agricultura, e isso traz para a empresa produtora uma vulnerabilidade muito grande, porque nós e a Sucen, em São Paulo, seríamos os únicos compradores do DDT; por outro lado, traz uma vulnerabilidade para nós também, que dependeríamos de uma só firma. O Brasil detém, através da Far-Manguinhos, a tecnologia da síntese do DDT, isso não é problema, quer dizer, se eventualmente for preciso fazer o DDT, pode-se fazer. O que acontece é que, comercialmente, está difícil encontrar uma empresa que se interesse por isso. A Matarazzo e a Norquisa estão mostrando interesse em fabricar, mas desde que haja um mínimo de garantia; mas quem pode dar garantia de aquisição? Nós pensamos até no próprio Ministério da Saúde, a própria Fundação Oswaldo Cruz, ter a sua linha de produção, porque é um instrumento de segurança nacional. O mesmo acontece com medicamentos, que nós só dominamos a síntese de um medicamento que a Sucam consome, que ainda não está sendo fabricado no Brasil, mas é o único que já tem a síntese aqui; o resto, tudo é importado. Nós consideramos isso uma extrema vulnerabilidade em termos de segurança no país, e estamos tentando agora, através da Secretaria de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, que a Far-Manguinhos possa pelo menos coordenar essa síntese de drogas; não que vá comercializar aqui no Brasil, mas pelo menos deter a síntese — para que, na eventualidade de um bloqueio econômico, nós tenhamos saídas próprias.
Outro problema é o da opinião pública, que está contra o uso de organoclorado; estamos tendo problemas como nunca tivemos. Nosso Superintendente agora está no Rio Grande do Sul, que é um estado extremamente sensível aos agrotóxicos, para discutir o uso de BHC numa área onde o prefeito proibiu, pela campanha contrária a seu uso na agricultura. E o fato é que a malária, na verdade, não tem muito apelo político, porque está atingindo pessoas que estão distantes dos grandes centros de decisão.
Dr. M. Aragão
— Eu queria adicionar alguma coisa sobre o que o Pedro Tauil falou sobre o DDT. Eu tomei parte naquele manual que vocês editaram e posso dizer que não foi fácil segurar o DDT e o BHC ali. Havia uma porção de gente que achava que lá não se devia mencionar nenhum dos dois. Há uns 10 dias atrás eu também tomei parte no grupo da Associação dos Engenheiros Agrônomos aqui do Rio de Janeiro que fez um substitutivo para entrar no lugar de três projetos que estão na Assembléia Legislativa do Estado sobre a Lei dos Agrotóxicos. É impressionante o ódio que o pessoal tem contra o DDT. Para mim, isso é o resultado de uma campanha das multinacionais de inseticida, porque o DDT é muito barato; e olha, entre outras coisas, a OMS foi conivente nisso. Você pega um data-sheet da OMS, ela dá como dose letal do DDT, se não me engano, 250,270 miligramas/quilograma; isso foi determinado com o DDT dissolvido em óleo comestível, e eu não conheço nenhuma formulação de DDT que seja dissolvido em óleo comestível.
Pergunta
— Em que estágio está a pesquisa da mefloquina? Você pode falar mais sobre essas novas drogas?
Dr. Tauil
— A mefloquina está pronta para ser lançada no comércio. Há também a clindamicina, já no comércio, o nome é Dalacin; essa droga, nós a consideramos muito útil, mas como retaguarda, para mão de médico; não aconselhamos seu uso indiscriminado, e achamos que deve ser utilizada nos casos resistentes a outros esquemas. Está se propondo que a mefloquina, para evitar o aparecimento de resistência precoce, seja comercializada associada à sulfa e à pirementamina, porque, mesmo não havendo sinergismo, haveria uma somatória de efeitos. Eu acredito que, para um indivíduo bem tratado, no hospital, relativamente precoce em termos de malária, há armas, hoje. Não é para se ficar desesperado, porque há armas que levam à cura, não existe nenhuma cepa que resista a toda essa bateria de drogas. Nós achamos que os casos de gestantes são casos graves; a gestante com Plasmodium falciparum é caso grave; não se pode bobear num caso desses, mas existem armas que permitem que, em termos individuais, ninguém entre em pânico por não existir droga contra a malária. Agora, não existem drogas para uso em massa num programa. Nós esperamos que a mefloquina possa trazer inclusive uma visão diferente do programa. Depois de muito sofrer na Amazônia com o problema da malária, nós estamos agora com esperanças. Tem uma pessoa na Sucam que desenvolveu um modelo teórico de uso de drogas o qual ainda estamos discutindo. Com o advento da mefloquina, que tem as características de ser uma droga de ataque, de dose única e que cura radicalmente o falciparum, eventualmente a medicação poderá ter um papel não apenas subsidiário no programa, mas, nessas áreas onde há uma resistência, há uma relativa ineficácia do DDT, a medicação assumiria um papel mais importante, atuando no outro elo da cadeia epidemiológica, que é o esgotamento do reservatório o mais precocemente possível. Como também se falou aqui, nós não podemos esperar soluções gratuitas de pessoas de outros países, porque quem está vivendo o problema da malária, hoje, são os países subdesenvolvidos; o interesse dos países desenvolvidos é apenas de formular uma droga que possa ser vendida aqui. Fora disso eu não vejo muito interesse, a não ser que a malária comece a ameaçar novamente os países desenvolvidos. Nós já esperamos demais por soluções mágicas; mesmo a vacina a gente tem esperado angustiadamente, mas sabemos que não é fácil, e a perspectiva não é assim tão a curto prazo. Então nós precisamos buscar nossas fórmulas, e isso tem sido uma preocupação constante dentro da Sucam. Esse modelo teórico parece bastante consistente, é baseado nas teorias desde Ross — a fórmula de Ross, da prevalência atual e da prevalência primitiva — até os trabalhos de MacDonald, trabalhando-se na redução da capacidade vetorial e no esgotamento do parasita. Essa fórmula teoricamente está bem consistente, mas na prática não temos uma experiência vivida para poder dizer se funciona ou não. Vamos fazer uma experiência agora, provavelmente no Amapá, numa área de garimpo onde não dá para usar inseticida.
Pergunta
— A Sudam, nas normas que regem a concessão de benefícios, dispõe de uma cláusula que coloca claramente a necessidade de determinados controles para evitar a propagação das endemias. Sabemos que isso é uma letra morta; seria possível, a seu ver, alguma pressão política no sentido de transformar essa norma em algo real, que pudesse ser atendida pelas empresas?
Dr. Tauil
— Eu me sinto . . eu fui representante do Ministério da Saúde na Sudam, e essa resolução saiu no último dia ... no dia 15 de março de 79, antes de mudar o governo; foi fruto de uma conscientização muito grande dos conselheiros da Sudam. havia muita resistência, porque implicava ônus financeiro. Depois disso, a Sudam caiu muito no seu nível de investimento; e os programas que existem naquela resolução nunca foram seguidos nem pelo Banco do Brasil, nem pelo Banco da Amazônia, que são conselheiros também — havia recomendações para os pequenos projetos que eles financiassem. O BNDES, agora, no momento em que acrescentou o S, tem um grupo muito sensível a isso, inclusive estão negociando a introdução de cláusulas que visam a proteção contra malária, febre amarela e leishmaniose em projetos da Amazônia financiados pelo BNDES. Bom, existe a norma, a resolução deve ser cumprida. Mas a Sudam tem dificuldades de acompanhar adequadamente os projetos que financia. Eu acredito sinceramente que toda pressão é válida, porque também acredito que as medidas propostas lá na Sudam resolvem — onde foram aplicadas, resolveu. Grandes projetos, como o da Volkswagen, Bradesco, esses projetos que podem fazer o que você recomenda, não tiveram grandes problemas de malária — simplesmente tomando medidas adequadas de triagem das pessoas que entram para o projeto, condições de moradia pelo menos dignas, uma casa com paredes, telada. Nessas áreas a malária não tem condição de progredir. Nós já fizemos, várias vezes, investidas para que isso seja cumprido e estamos fazendo agora negociações, às vezes até com os próprios empresários individualmente, com a Associação de Empresários da Amazônia, para tentar implantar estas normas. Eles têm interesse, porque fica mais caro transportar o doente de malária de avião. Então há interesse econômico também das empresas, que têm procurado a Sucam para fazer um trabalho conjunto.
1 "O principal dado do programa da malária é a migração intensa, desordenada, desesperada.''
2 "Nem sempre o que é moderno realmente substitui o que não é moderno".
3 "não é de se admirar com o que está acontecendo agora no Brasil".
4 . . . acabar com os criadouros, ainda com os criadouros, sempre com os criadouros de mosquitos".
5 "o gambiae em 1938 causou talvez a maior epidemia de malária ¡á ocorrida no continente".
6 "foi essencial para o controle da malária a tremenda disciplina que havia no Serviço".
7 "em comparação com outros problemas, a parte da pesquisa é quase secundária".
8 "É importante ter gente bem paga, que não queira perder o emprego".
9 "O mais importante, para avaliar as dificuldades do programa, é observar as coberturas que vêm sendo obtidas".
10 "Há o risco de grandes epidemias, fora da Amazônia, pois a maior parte da população não possui mais imunidade".
11 "A primo-infecção por Plasmodium falciparum tem grande letalidade".
12 "Não há atualmente recursos humanos suficientes, nem condições de recrutá-los e retê-los, com os salários que são oferecidos".
13 Perspectivas em Imunologia da Malária.
14 A resposta imune inespecífica — a "tempestade imunológica"
15 A resposta imune específica não protetora — "o desperdício"
16 A resposta imune específica protetora — "o tiro certeiro"
17 A vacina anti-esporozoíto — "eliminando o mal pela raiz "
18 A imuno-entomologia
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