Congresso Em Foco - 14/02/2019
No Brasil, o caráter particularista do processo colonizador pelos europeus absorveu o modelo de administração pública portuguesa na forma de ver o Estado como extensão das famílias dominantes. Poderes locais se sobressaíam pulverizando as funções administrativas entre parentes e apadrinhados que viviam ao redor dos senhores proprietários de terra.
A Constituição Imperial (1824) em seu art. 179, XIV, limita-se a orientar que todo o cidadão pode ser admitido aos cargos públicos civis, políticos ou militares, sem outra diferença, que não seja a dos seus talentos e virtudes, sem qualquer pensamento fomentador de desenvolvimento de um corpo político organizado e burocratizado, com interesses nacionais.
A Constituição Republicana de 1934 (art. 170, §2º) determinava a realização de concurso público em caráter específico para situações especiais. O concurso não tinha um caráter geral, antes era uma exceção. A lei determinaria para quais cargos deveriam ser observadas as exigências de concurso público.
As sucessivas Constituições de 1937 e 1946 repetiram a fórmula da Carta de 1934. Foi na Carta de 1967 que surgiu a exigência do concurso público para o acesso a todos os cargos e empregos públicos mediante concurso público. Não logrou êxito, no entanto, este impulso moralizador, tendo a Carta de 1969 (art. 97) retomado a questão aos moldes anteriores.
Com a redemocratização do país e com a exigência precípua de atingir a qualidade esperada pela sociedade como prestador de serviços e empregador, percebeu-se que era preciso dotar o Estado de um quadro permanente de servidores concursados, não sujeitos às ingerências políticas, cujo princípio do mérito fosse o critério basilar para que os cidadãos fossem investidos em cargos públicos. Estabeleceu, assim, o constituinte de 1988, o ingresso em cargo público por meio de concurso público, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração (art. 37, incisos I e II).
Notícias recentes informam sobre as atividades desempenhadas por assessores legislativos, desviados de suas funções, cumprindo jornada de trabalho em outros empregos e, até mesmo, sobre a suspeita de repasse de parte de seus rendimentos a terceiros.
No âmbito da Câmara dos Deputados, a título ilustrativo, os cargos em comissão de Secretário Parlamentar têm por finalidade a prestação de serviços de secretaria, assistência e assessoramento direto e exclusivo nos gabinetes dos deputados. O cargo é de livre nomeação e exoneração (Lei nº 8.112/1990, art. 3º, parágrafo único, e art. 9º, inciso II). Sua ocupação se dá mediante a indicação do Deputado titular do gabinete. Cada gabinete pode ter até, no máximo, 25 (vinte e cinco) secretários parlamentares, cuja remuneração se dá conforme Tabela de Níveis de Retribuição[1].
Ao indicar o secretário parlamentar, o Deputado: determina sua retribuição, de acordo com a Tabela de Níveis de Retribuição; informa o local de seu efetivo exercício (gabinete em Brasília, projeção estadual do Gabinete ou representação política no estado); identifica sua atribuição: assessor parlamentar, assistente parlamentar ou auxiliar parlamentar, conforme descrito no Ato da Mesa nº 72/1997. Os secretários parlamentares estão sujeitos ao cumprimento de jornada de trabalho de 40 horas semanais.
É preciso valorar os problemas noticiados com a contratação de tais assessores, cargos comissionados, a fim de conciliar a eficiência da gestão e a moralidade administrativa com a obrigatoriedade de realização de concurso público.
O concurso público materializa, em contraponto a farta distribuição de cargos comissionados a apadrinhados e, até parentes, um fundamento básico de nossa República assentado no art. 1º da nossa Constituição de 1988: a cidadania. O servidor concursado, como se espera, mantém a continuidade administrativa necessária aos serviços públicos, como, também, democratiza o acesso do cidadão às funções públicas através dos princípios da meritocracia, impessoalidade e igualdade.
A realização de concurso público é instrumento de efetivação dos princípios da igualdade, da impessoalidade e da moralidade administrativa, por meio do qual: (a) aferem-se aptidões necessárias aos ocupantes de cargos e empregos públicos na administração pública; (b) privilegia-se o sistema de mérito; (c) proporciona-se aos interessados participarem do certame em igualdade de condições; (d) selecionam-se os candidatos mais aptos a firmarem a relação jurídica estatutária ou laboral conforme o vínculo a ser encetado; e (e) afasta-se a prática ilegítima do nepotismo.
Como assentado pelo Supremo Tribunal Federal, o postulado do concurso público traduz-se na necessidade essencial de o Estado conferir efetividade a diversos princípios constitucionais, corolários do merit system, dentre eles o de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (CR/88, art. 5º, caput). (RE nº 837.311/PI, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 18/04/2016).
Segundo Meirelles[2], o concurso público é instrumento técnico de promoção dos princípios constitucionais, principalmente do postulado da isonomia, firmando-se como um meio de se obter moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público e, ao mesmo tempo, propiciar igual oportunidade a todos os interessados que atendam aos requisitos da lei. Pelo concurso afastam-se, pois, os ineptos e os apaniguados que costumam abarrotar as repartições, num espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de políticos que se alçam e se mantém no poder leiloando cargos e empregos públicos.
A realização de concurso público parte da presunção de que o servidor de carreira preenche, pela independência e profissionalismo na defesa do interesse público, a necessidade do administrador de encontrar proficiência na realização de seus fins, sendo despiciendo a procura de terceiros fora do quadro dos servidores efetivados por concurso quando o princípio republicano requer a participação ativa e engajada de todos os cidadãos nos assuntos públicos.
[2] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 29ª ed. São Paulo: Malheiros. 2004, p. 413.
Por Marinês Restelatto Dotti
Marinês Restelatto Dotti - Advogada da União, especialista em Direito do Estado e em Direito e Economia pela UFRGS. É autora de Governança nas contratações públicas - Aplicação efetiva de diretrizes, responsabilidade e transparência, entre outras, além de coautora de diversas outras publicações. Professora no curso de especialização em Direito Público com ênfase em Direito Administrativo da UniRitter – Laureate International Universities. Conferencista na área de licitações e contratações da administração pública.
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