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Desafio da coerência na construção de um regime de decisões vinculantes
O Supremo Tribunal Federal veio de aprovar recentemente, a PSV 88, em que se convertia a anterior Súmula 339 em Vinculante, agora numerada como 37, em que se afirma: “Não cabe ao poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob o fundamento de isonomia”. A pronúncia não traz em si substantiva inovação, seja porque reitera jurisprudência assentada, seja porque limita (em tese) sua incidência a uma específica quaestio juris, a saber, aquela da possibilidade da atuação substitutiva da Corte Constitucional, resgatando judicialmente igualdade em hipóteses onde ela não se estivesse verificando.
Duas são as questões — mais sutis — que o referido Verbete suscita, e que merecem o devido apontamento: 1) a proclamação como premissa, da impossibilidade do exercício de função legislativa; e 2) a interface dessa decisão vinculante, com RExt RG 565,089, Rel. o Min. Marco Aurélio, que encontra-se com o julgamento em curso — aqui discute-se a possibilidade de outorga pelo Judiciário, de reparação de danos pela não observância de parte da entidade federada empregadora, do dever constitucional de empreender à revisão geral anual (artigo 37, inciso X CF). Ambas as questões desafiam um imperativo de coerência e integridade nas decisões da Corte, especialmente aqueles que se revestem de particular força operativa, transcendendo os limites subjetivos da demanda.
No primeiro tema — a premissa que exsurge da Súmula Vinculante 37 — tem-se a sutil questão, para fins de aplicação futura, da vinculatividade de parte da proclamação empreendida pela Corte com pretensão subordinante. Isso porque para afirmar que o STF não poderia restaurar a isonomia vencimental entre servidores em litígio, a Corte enuncia claramente que não pode desenvolver função legislativa. Observe-se que tal assertiva é premissa para a conclusão — não cabe resgatar isonomia porque não pode a Corte desenvolver função legislativa.
É por todos conhecido, de outro lado, que a Corte tem se afastado desse dogma da impossibilidade do desenvolvimento de função de legislador positivo em várias hipóteses, sendo as mais notórias, aquelas relacionadas ao mandado de injunção no tema da greve de servidores públicos (MI 670 e 708, dentre outros) e da aposentadoria especial desses mesmos trabalhadores (MI 721). Esta última hipótese, aliás — da aposentadoria especial — determinou por sua vez, a edição da Súmula Vinculante 33, assim enunciada: "Aplicam-se ao servidor público, no que couber, as regras do Regime Geral de Previdência Social sobre aposentadoria especial de que trata o art. 40, §4º, inciso III, da Constituição Federal, até edição de lei complementar específica."
Pois bem. Os motivos para a edição da Súmula Vinculante 37 são em boa medida conhecidos — eis que cuida-se de mera reprodução da anterior Súmula 339. A Corte tem em conta o necessário equilíbrio (também) com o artigo 169, caput CF, que regulado na Lei Complementar 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal), estabelece limites para o gasto com pessoal das entidades federadas. Significa dizer; chamar para si a competência para restaurar isonomia, para tanto conferindo aumento a servidores, poderia entrar em reta frontal de colisão com o artigo 169, caput CF, levando a Corte a um impasse insuperável. Estrategicamente portanto, afirmar a inviabilidade do exercício em si da função legislativa é uma alternativa elegante. Destaque-se que o enunciado da Súmula Vinculante 37 limitou-se a reproduzir fielmente aquele da antes Súmula 339 — alternativa que de um lado serve ao argumento sempre desejável de segurança jurídica; e que se outro lado dá à Corte o conforto de não estar (aparentemente) criando também para si, fato novo.
Tem-se aqui posta então a primeira indagação: é possível destacar do enunciado da Súmula Vinculante 38 a premissa de que a Corte não pode exercer função legislativa, e evoca-la em oposição a outras decisões, do próprio STF ou de outras Cortes, em que essa mesma função se tenha manifesta? É possível “segmentar” o reconhecimento da aptidão institucional para o desenvolvimento da função legislativa — afirmada inviável para fins de restauração da isonomia vencimental entre servidores, mas possível em outras hipóteses?
A segunda questão é igualmente sutil — mas não menor relevante — e envolve o dever de coerência interna entre as decisões (que a Corte qualificou como administrativas) de edição de Súmula Vinculante. Observemos a própria sequência de acontecimentos.
Havia vinculante prévia (33), em matéria de servidores públicos — no campo da seguridade, é certo, e como mecanismo necessário à superação da infidelidade constitucional decorrente da inércia do legislador. Mas nessa temática (regime de aposentadoria especial) o STF, por intermédio de Súmula Vinculante desenvolveu claramente função de legislador positivo — temporária e excepcional, como é próprio do MI; mas o fez. E essa circunstância — existência de decisão anterior em Sumula Vinculante, em matéria próxima, onde a viabilidade em tese do exercício da função legislativa pela Corte — não foi debatida para fins de aprovação da Vinculante 37. Não haveria um dever de coerência interna entre enunciados revestidos de vinculatividade? Seu objetivo não é subsidiar a proteção à coerência e integridade do sistema jurídico no plano nacional, a partir da perspectiva constitucional?
Segundo aspectos indissociavelmente relacionado a esse mesmo desafio de coerência e integridade, é a decisão em construção no com RExt RG 565.089 — referente à possibilidade de substituição dos efeitos do comando legislativo (materializados da revisão geral anual) por condenação pecuniária. A edição, no curso do julgamento, da Súmula Vinculante 37 atrai a preliminar de mérito de análise da possibilidade do desenvolvimento de função legislativa pela Corte? É possível descartar na hipótese, a natureza claramente legislativa do comando que venha a emanar do STF numa eventual decisão de provimento do recurso, pela simples circunstância de que os efeitos do comando judicial se projetariam para o passado — e não para o futuro?
As observações acima permitem sugerir uma importante agenda reflexiva para o sistema de precedentes vinculantes que se vem construindo no cenário brasileiro — e que encontra-se em vias de ganhar força, na hipótese de aprovação do novo Código de Processo Civil. Em favor da objetividade, permito-me apresentar tais pontos ainda obscuros, em itens:
A aprovação de Súmula Vinculante que reitera posição da Corte sedimentada em Súmula não revestida de vinculatividade exige, ou mesmo recomenda, a adoção do mesmo enunciado? Ou a Corte deve se permitir — ou mesmo se exigir — empreender à atualização do texto, tendo em conta novos ângulos da temática que ela mesma tenha apreciada na anterior aplicação da súmula já editada, sem o regime de vinculação de efeitos?
A aplicação de Súmula Vinculante permite o destaque das premissas autônomas nela fixadas? Essas premissas autônomas nela fixadas, se inobservadas, permitem por si a oferta de Reclamação?
A aprovação de Súmula Vinculante em tema claramente conexo com outra matéria submetida ao STF, com julgamento em curso ou por se iniciar, exige a formulação pela Corte do distinguishing como requisito de validade da decisão nova?
A aprovação de Súmula Vinculante — multiplicadas as hipóteses — como deliberação administrativa comporta a análise da coerência interna entre as decisões anteriores igualmente materializadas em Súmula Vinculante? Se tal análise é devida, a atividade que envolve distinguishing poderia seguir sendo qualificada como meramente administrativa?
A migração para um regime de decisões judiciais vinculantes é sempre um processo a exigir adaptações — e isso é um fato natural da vida. Nem por isso, estará a comunidade do Direito dispensada do exercício intelectual de antecipar (na medida do possível) os desafios, e construir algo que se possa verdadeiramente qualificar de sistema.
A qualificação, de outro lado, como sistema, atrai a ideia de um conjunto de elementos interconectados, de modo a formar um todo organizado. Coerência e integridade — para repetir uma vez mais a expressão que é de Dworkin — são atributos indispensáveis desse mesmo todo, que devem ser perseguidos incessantemente; sem os quais, a multiplicação de decisões jamais se revestirá de aptidão de pacificar as relações sociais.
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