Agência Senado - 24/09/2013
A implantação da política de cotas raciais para ingresso no serviço público foi amplamente defendida em audiência pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) nesta terça-feira (24). Atendendo a pedido de convidados e entidades que acompanharam o debate, a CDH se comprometeu em encaminhar documento à presidente da República, Dilma Rousseff, com apelo para que a medida já em estudo no governo seja acelerada.
A presidente da CDH, senadora Ana Rita (PT-S), que dirigiu a audiência, afirmou que a extensão das cotas ao serviço público é uma medida necessária, pois as desigualdades econômicas e sociais são persistentes e afetam especialmente a população afrodescendente. Ela observou que, do total de inscritos no Cadastro Único dos programas sociais do governo, 68,23% são pessoas negras.
- A população afrodescendente quer acesso não apenas ao ensino de qualidade, mas também a emprego decente, com isonomia em todos os campos. Esse é um direito básico, é um direito humano – justificou.
Para os convidados, a adoção das cotas no serviço público federal depende apenas de regulamentação por meio de decreto do governo, sem necessidade de aprovar lei com essa finalidade. O amparo jurídico estaria no próprio Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010) e, ainda, na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) a favor da constitucionalidade das ações afirmativas e na Convenção 111, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), reconhecida pelo Brasil.
Hédio Silva Júnior, professor de Direito Constitucional, observou que as convenções internacionais ganham força de lei depois de serem adotadas. No caso da Convenção 111, ele observou que seu texto adota o princípio de que medidas especiais de proteção ao trabalho não são consideradas “discriminações injustas”. Quanto à decisão do Supremo, salientou que naquele julgamento foi reconhecida a constitucionalidade não apenas do acesso ao ensino superior por cotas, mas do próprio princípio da ação afirmativa.
- É o que diz o Supremo. Não é coisa de um preto recalcado que sofreu discriminação – reagiu o professor, apontando "tendência na mídia" de restringir o alcance da decisão às cotas nas universidades.
“Argumento artificial”
Para Augusto Werneck, procurador do Estado do Rio de Janeiro, também não faz sentido, do ponto de vista constitucional, diferenciar, no caso das cotas, o ingresso no serviço público do ingresso nas universidades. A seu ver, esse é um “argumento artificial” que, no fundo, tem “fundo racista”. Já havendo base constitucional, conforme o procurador, basta haver previsão em lei, respaldo que o Estatuto da Igualdade Racial já garante.
- Todos os mecanismos estão na mão do governo federal – disse Werneck, ao reforçar que basta um decreto presidencial.
Rui Portanova, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, registrou que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) avalia a questão da aplicação das cotas nos concursos para acesso às carreiras do Judiciário. Porém, avaliou que o relator inicialmente designado desaprovou a medida. A seu ver, no entanto, esse é um direito dos negros que precisa ser o mais rapidamente regulamentado em todas as esferas. Para isso, ele chegou a sugerir que seja proposto um mandado de injunção, instrumento jurídico que pode ser acionado para exigir que o Estado cumpra obrigações legais pendentes.
Pioneiros
Frei David Santos, diretor da organização Educação para Afrodescendentes e Carentes (Educafro), destacou que a comunidade negra do país hoje tem como bandeira a luta pela aplicação do sistema de cotas em todos os setores no serviço público, com plena regulamentação do Estatuto da Igualdade Racial. Ele registrou que os governos do Rio de Janeiro, Paraná, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul já regulamentaram o sistema de cotas em seus concursos públicos, assim como cerca de 100 municípios.
– Apesar das cotas, ainda é grande o fosso entre brancos e negros no Brasil – disse Frei David.
Ao comentar caso de jovem loiro que ingressou no Itamaraty se utilizando do sistema de cotas raciais, o dirigente do Educafro reconheceu a necessidade de alterar o método de autodeclaração para evitar “que brancos desonestos usem o sistema para se beneficiar”. Ele lembrou que o Itamaraty foi o primeiro órgão público federal a adotar o sistema de cotas em seus sistemas de seleção, sem exigir a edição de uma nova lei.
Ângela Nascimento, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, contou que negros e pardos, apesar de representarem metade da população brasileira, ainda ocupam apenas 35% das vagas disponíveis nos cursos de graduação, 26% de mestrado e 22,3% de doutorado. Ela registrou ainda que apenas 3,27% da população negra têm nível superior completo. A seu ver, o sistema de cotas tem contribuído para a promoção da inclusão social, mas precisa ser ampliado diante de uma realidade ainda marcada pela desigualdade de oportunidades.
Paulo Paim (PT-RS), autor do requerimento para a audiência, elogiou a mobilização da comunidade negra no Brasil, que resultou na aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, e reafirmou a necessidade de manter essa mobilização para o cumprimento dos direitos previstos na lei. Também participaram os senadores João Capiberibe (PSB-AP) e Eduardo Suplicy (PT-SP), além de Carla Beatriz Nunes Maia, defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro
Antecedente
Em julho, a presidente Dilma Rousseff recebeu representantes de 19 organizações do movimento negro, como parte da agenda de reuniões com a sociedade civil que se seguiu à onda de protestos pelo país. Na ocasião, entre outras reivindicações, o movimento negro cobrou a implantação da política de cotas raciais no serviço público federal. Dilma disse que aguardava avaliação dos ministérios envolvidos na discussão. Durante a audiência na CDH, os participantes revelaram que a Procuradoria do Ministério do Planejamento já se manifestou de forma contrária, posição que foi amplamente criticada.
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