As histórias dos agentes da malária
Narciso Netto
Os agentes de saúde da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), antiga Sucam, que trabalham no tratamento e controle de casos de malária, dentre outros agravos, no Estado do Acre, deveriam ser considerados heróis, pois desde o começo enfrentam os mais diversos infortúnios e dificuldades no desempenho de suas funções. Houve uma época que somente eles levavam saúde e informações para os mais isolados recantos dessa terra.
Conta a história que um dia durante umas das suas viagens de desobriga o padre Paolino Baldassari, personagem histórico da região de Sena Madureira, chegou à uma colocação e achou que estava no local mais isolado do Acre, onde nunca nenhum tipo de assistência do governo deveria ou poderia ter chegado. Mas, para sua surpresa, lá estava colada na porta a ficha que os guardas de malária colocam e assinam durante suas visitas.
Atualmente, ainda há muitos desses guardas de malária ou “Seu Malária”, como são chamados nos seringais e colônias. Mais, também há um grande contingente de aposentados e doentes por tanto tempo expostos aos mais diversos tipos de inseticidas, como o DDT, que foi usado durante anos e pelas dificuldades do trabalho.
As dificuldades do serviço vêm do fato de que antigamente para se realizar um serviço de tratamento de malaria levavam-se meses, pois não havia estrada asfaltada e às vezes nem mesmo estrada. O guarda passava vários períodos longe da família, o que de certa forma gerou certo folclore sobre sua vida e trabalho.
É fato corrente entre eles que o guarda só tem data certa pra sair de casa e nunca uma data certa de voltar. Todos esses fatos geraram muitas situações verídicas que passaram a ser tratadas como causos por quem as escuta hoje e não conhece a realidade do trabalho desses heróis.
Quando foi criada, a antiga Superintendência de Campanhas (Sucam) tinha um regimento interno e uma hierarquia muito semelhante com a dos militares. O guarda deveria estar, dentre outras coisas, sempre com a farda impecável e se apresentar-se dizendo seu nome, seu posto, número e o número de sua turma sempre que na presença do supervisor ou chefe de turma.
Aconteceu que certo dia, quando um supervisor foi até determinada turma que estava de folga e acampada em uma colônia na BR 317, o primeiro guarda que ele viu, além de ligeiramente embriagado, não se apresentou como deveria. Então o supervisor procurou o chefe de turma e o advertiu sobre o comportamento inadequado dos seus guardas. Assim que o supervisor saiu o chefe da turma chamou o guarda e também o advertiu. Passados alguns dias o supervisor teve que voltar até aquela turma só que assim que ele desceu do carro o guarda que havia sido advertido foi até ele bateu continência, se apresentou como mandava o regulamento e arrematou: - Agora tu vai lá no meu chefe e diz de novo, fofoqueiro!
Outro fato verídico aconteceu na cidade de Envira, no Amazonas. Sabendo que ia acontecer um grande arraial na cidade, os guardas de malária deixaram a embarcação em que viajavam na Foz do Envira e foram para a festança na cidade em uma voadeira. No arraial, dois guardas começaram um flerte com duas irmãs, bem receptivas, que foram para a festa na companhia da mãe, que vendo aquilo e sabendo da fama de namorador dos guardas de malaria ficou de olho.
Durante o arraial ficou combinado entre os guardas e as moças que assim que as luzes fossem apagadas na cidade - naquela época as luzes eram apagadas depois das 22 horas - eles iriam até a casa delas, que deveriam armar as redes em um local de fácil acesso, e iriam namorar em outro local com mais privacidade e liberdade.
Acontece que a velha mãe, prevendo o que poderia acontecer com as filhas, trocou de lugar com elas. Como tudo já estava acertado, os guardas esperaram as luzes apagarem e foram até a casa para pegar as moças, só que para a surpresa deles assim que eles tocaram nas redes chamando as namoradas quem acordou e foi logo fazendo um escândalo que acordou toda a pequena cidade foi a velha que aos gritos de socorro tarado colocou os dois amigos pra correr até que conseguiram se esconder em um barranco na beira do rio, onde esperaram tudo voltar a normalidade para em seguida sumir dali.
As histórias são muitas. Certa vez, em um ramal distante, um guarda se apaixonou por uma moradora local e resolveu que iria trazê-la para a cidade e assumi-la como mulher. Mas, como a vida do “Seu Malária” nunca é fácil, a sua amada já era casada, coisa fácil de revolver achou ele, já que ela também estava apaixonada por ele. Bastava roubá-la do marido, fugir com ela para a cidade.
Ele contou sua intenção para a amada, que lhe disse que tal dia seria o ideal, pois seu marido não estaria em casa. Tudo armado, chegou o tal dia e o combinado era que ele entraria na casa dela pela janela do quarto e sairiam direto pra cidade antes do dia amanhecer. Quando a hora chegou o guarda apaixonado pulou a janela e na escuridão total foi até a cama da amada, pegou sua mão e começou a chamá-la. Enquanto acariciava a sua mão, ele pensava: “Como é grossa e forte a mão dela, deve ser porque ela trabalha no pesado, mas isso vai ser passado vou dar pra ela vida de rainha”.
Só então ele percebeu o estranho barulho de unhas roçando na parede de paxiúba. Ele então diz: “Meu amor, o que você ainda ta procurando numa hora dessas?” E como resposta veio àquela voz grossa, que ele diz lembrar até hoje: “Tô procurando meu terçado, que eu não sei onde coloquei, que é pra te matar cabra safado”. Há quem jure que o guarda pulou a janela e foi correndo até a cidade mais próxima.
Todos esses fatos são verdadeiros e hoje são contados quando as turmas estão nas estradas, acampadas no mato ou de favor em alguma casa de farinha nos ramais ou igarapés do interior. Quando as turmas de “Seus Malária” estão cuidando anonimamente de acreanos que se encontram em locais onde somente eles e mais alguns ousam ir. O Acre deve muito a esses homens e a hora de fazer esse reconhecimento está passando, mais alguns anos e talvez não se ouça mais alguém dizer: “Bom dia ‘Seu Malária’, pode entrar”!
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